quarta-feira, 15 de agosto de 2007

DANÇA DAS CADEIRAS

Margarida parece desgovernada. Acaba de perder o emprego de gerente comercial de uma grande rede.

Sem saber o que pensar e muito menos o que fazer, anda sem destino pela cidade. Ela é uma desempregada. O desemprego que sempre considerou uma exclusividade dos derrotados agora lhe pertence. Alguma coisa está errada. Com certeza alguém “armou” para pegar o seu lugar. Inveja. Sim, foi inveja e não incompetência o motivo da injusta demissão. É um paradoxo. Seus patrões sempre souberam a maneira certa de agir; ela sempre aprovou e justificou com veemência todas as demissões ocorridas nos últimos anos; eram necessárias, tinham de acontecer. No mercado de trabalho não há mais lugar para médios e regulares, só quem é bom, muito bom, é que permanecerá empregado. Por isso, seus amigos foram demitidos. Por não ouvirem seus conselhos, não seguirem seu exemplo. Por não “vestirem a camisa da empresa” como ela.

E agora? O que fazer com a “camisa” da empresa? Demitida sem uma justificativa convincente. Perdida no “olho da rua”. Ela e a “camisa”. Desempregada. É assim que terá de responder quando perguntarem sua profissão atual. Sente vergonha. Vergonha do seu fracasso, vergonha de não estar entre os melhores, de ser uma desempregada. Vergonha de enviar currículos para gerentes que jamais irão lê-los. Como uma cortina trocada, não vê como um substituto pode ser mais útil. A colaboradora fiel do sistema é agora sua vítima. Chora como um cão esquecido pelo "dono".

Margarida baixa a cabeça. Não sabe como se colocar perante suas idéias. Nesse momento, ela é tudo que sempre atacou. Dói. Onde foi que errou? Por que ela? Com certeza cederão seu lugar a alguém menos capacitado. Será que alguma daquelas subalternas teria se oferecido sexualmente a algum diretor? Será que fora esse seu erro? Errou por ser correta demais? Por não se corromper nesse mundo sujo? Ah, com certeza! Não há outra justificativa.

Na vitrine o vestido, que ela iria usar na sua festa de aniversário, continua esperando por ela. Mas, agora ela é uma desempregada. Desempregados não têm direito de comemorarem aniversários. Comemorar com festa, pelo menos, é inadmissível. Aonde já se viu? Até chegar o seu aniversário ela já terá arranjado outro emprego. Pensando melhor, com o dinheiro dos seus direitos abrirá um negócio próprio. Talvez o dinheiro não dê. Precisa saldar suas dívidas. O carro novo que acabou de comprar precisa ser pago. Se vender o antigo dá para pagar o novo. Jamais. O antigo ela deu de presente para sua mãe, mesmo que a mãe nunca use o carro, ela não pode vender. É necessário. E de mais a mais, a sua adorada mãe não tem culpa do seu fracasso. Tem também a faculdade. Tudo bem que decidiu cursar administração apenas com o intuito de ser promovida, de ocupar um cargo na diretoria. Mesmo assim não pode abandonar. Irá até o fim. Pagará até o último centavo por seu diploma universitário. Vale a pena. O dinheiro que receberá pela demissão, injusta conforme ela pode constatar, dará para pagar as mensalidades da faculdade e uma boa parte das prestações do carro. E os móveis novos? E o cartão de crédito? Precisa saldar as prestações do Cruzeiro que consumiu nas férias. Em todas as palestras proporcionadas pela empresa, e também nos livros que leu, seus mestres sempre disseram que o vencedor é aquele que faz dívidas, que tem contas para pagar. Ela seguiu os conselhos a risca e agora é uma desempregada.Mesmo assim, valeu a pena. Tudo o que ela conseguiu deve ao grupo. Usará o dinheiro para pagar as contas e rapidamente arranjará um novo emprego. Em outra parte da cidade alguém escuta um samba antigo de Noel Rosa (“velharia, não é do meu tempo”, diria Margarida) que diz: “Quanto a você da aristocracia que tem dinheiro, mas não compra alegria há de viver eternamente sendo escrava dessa gente que cultiva hipocrisia”.

“Deus sabe o que faz”, sussurra, “nada do que acontece é para o nosso mal.” (Abro este parêntese consciente de que parecerei intrometido, mas não posso deixar de incluir uma pergunta pessoal em meio aos pensamentos da recém-excluída Margarida; sei bem que filosofar perante a dor alheia é inconveniente, mas não tenho saída; se não perguntar me sentirei omisso: Caro leitor, terá Deus alguma coisa a ver com o excludente sistema neoliberal? Será ele o responsável pelo culto ao lucro? Terá ele a mesma concepção limitada da nossa raça em que tudo está dividido em dois, bem/mal, sorte/azar, ser - humano/ natureza, trabalhadores/vagabundos, vencedores/perdedores, etc. e tal, ou tudo faz parte de um todo, no caso Ele mesmo, sem adjetivos?).

Margarida ainda está parada diante da vitrine (Graças a Deus o nosso debate filosófico não prejudicou em nada nossa observação), pensa nas compras que fará quando arranjar um novo emprego. Talvez tenha dificuldades para conseguir. A situação do País está difícil até para os capacitados. Caso não consiga, a saída será emigrar. Como um girassol, ou melhor, um giraemprego, giradinheiro talvez seja mais oportuno, olha em todas as direções a procura de alguém que possa lhe oferecer uma oportunidade instantânea. Sempre foi assim, sempre girou a procura de vantagens, de lucro, de um “status”. Por isso, venceu. E a aparente derrota não significa o fim de sua batalha. Tem contatos, boas relações, é bem vista. Se os excluídos precisam da caridade governamental, ela não. Jamais será uma excluída. Se tivesse vocação para a derrota teria seguido seu talento e estaria nesse momento dando aulas para criancinhas (provavelmente menos cansada e mais realizada e, com certeza, sendo muito mais útil; desculpem-me a nova intromissão, mas ela esqueceu e eu não pude abster-me de completar) e ganhando um salário que mal daria para comprar um carro zero. Não, não. Ela tem garra. É uma vencedora.

- Margarida! – quem a chama é uma amiga de faculdade – Ta de folga hoje?

- Saí de férias, precisava descansar. – Margarida tem vergonha da verdade.

- Você não falou nada. Por que não deixou pra sair de férias junto com as da faculdade?

- Eu estava muito cansada. São responsabilidades demais.

- Deixa eu ir que fui chamada para uma entrevista e não posso me atrasar. Beijinho.

Margarida olha a amiga esbaforida e tenta adivinhar quem está contratando no momento. A amiga é uma perdedora. Está desempregada há anos, não vai conseguir o emprego. Se ela tivesse a oportunidade seria contratada. Mas Deus (Ele de novo) é justo e algo grandioso está reservado para o seu futuro. Pensa nos planos que terá de adiar: sua lipo, sua casa em um condomínio fechado, suas compras no exterior. Sorri. Nada a fará desistir de seus sonhos.

E por aí vai Margarida. Confiante de seu sucesso, inconsciente de sua exclusão e alienação. Talvez um dia perceba onde está talvez nunca se conscientize da situação. O seu futuro profissional é incerto como o de milhões de pessoas. Sua vida é imprevisível como a do Planeta.

Está livre, porém, ao contrário do rouxinol chinês, o que ela busca é uma nova gaiola. Um porto-seguro que sirva como base para as suas mesquinhas aspirações.

* Incluído no livro "Desconstrução".

COMENTANDO COMENTÁRIOS

Foram maravilhosos os comentários feitos ao conto "Artistas, Crianças e Esperanças".
Roque sempre bem-humorado e com sua "malucidez" deu um balanço geral do tema; Zilmara, com a veemência que lhe é peculiar, fez um apanhado contundente sobre essas campanhas cujos intuitos estão bem longe da tentativa de melhorar o País e Walmir Carvalho fez quase um outro conto. Uma bela e real história sobre a hipocrisia e sua ramificações. Daria assunto para um dos belos contos que ele escreve e que estão disponíveis em seu blog (http://walmir.carvalho.zip.net/).
São comentários desse tipo que tornam o "Mandando brasa" colorido e agradável para mim.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Brasas em Minas

No blog do excelente Walmir de Carvalho há uma descrição triste e bela do que a administração da Vale do Rio Doce está fazendo por lá (eles sim, estão mandando brasas). O texto chama-se "Presente do Dia dos pais"(12/08/07), junto ele pede apoio a uma manifestação contra tais atrocidades...
Peço que as poucas(?) pessoas que leêm esse blog acessem o blog do Walmir e vejam do que estou falando:
http://walmir.carvalho.zip.net/

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

ARTISTAS, CRIANÇAS E ESPERANÇAS

Dança de chamas!

Quando o sinal fica vermelho para os motores é sinal que o trânsito está livre para a arte. E no palco de asfalto brilham Toni, Augusto, malabares e piruetas. Sem patrocínio, nem glamour, defendem suas artes, suas vidas e alguma esperança. *

Toni ama o malabares. Sua memória não alcança um tempo em que esteve longe do malabarismo. Quando criança juntava-se aos artistas de rua do bairro, acompanhando-os em suas exibições, aprendendo a manejar os instrumentos. Na idade em que se fez necessário procurar um emprego não conseguiu pensar em outra coisa que não fosse o malabarismo, a encenação, a arte circense. Cada colega seguiu um caminho. Uns tentaram uma dignidade honesta, outros pensam que se tornaram dignos na desonestidade. Alguns morreram, outros estão vivendo. Algumas almas de artista se conformaram com o papel de serviçais, algumas almas sem arte enganam no papel de artista. Toni fugiu com o circo de sua cidade, cruzou o País fazendo malabarismos e todo dia exibe seu espetáculo para um público apressado e sem tempo para pensar em diversão.

Esse é o seu auge, a verdadeira concretização de seus sonhos. Se for dito aqui que Toni tem alguma outra ambição profissional( fora o ofício de jardineiro que também exerce pelas manhãs), será mentira. O ofício de levar divertimento e alegria às pessoas em trânsito como um “take” de sonho em meio à engrenagem da rotina é a sua total realização.

Toni cospe fogo. Augusto vibra com o número do amigo. Os malabares em chamas sobem, circulam, descem, invertem as posições. Brilham nas mãos do artista que, como Renoir, faz arte por diversão. Diversão e algumas doses de conhaque. Quando o inverno aperta e as roupas de Toni não o defendem totalmente do frio, a solução é esquentar-se através da bebida. E, de conhaque em conhaque, Toni também brilha. Não para motoristas sempre preocupados com seus empregos, suas prestações e suas economias. Brilha para ele mesmo, para seus amigos de ofício – violeiros de esquinas, artistas plásticos de cerâmica, cantadores de ônibus, poetas de rua ou simplesmente comerciantes ( vendedores de balas velhas, engraxates, etc.) - e para muitos que a insensibilidade e a robotização ainda não alcançaram. Brilha para João Bosco.

É com a admiração e valorização de boa parte de seu público, aliado ao salário de enfermeira da sogra, que Toni sustenta sua família. Grande parte da alimentação, medicamentos e até material de estudo para Augusto, foram conseguidos através de permuta com os motoristas que pagam em espécie a faxina espiritual proporcionada pelos artistas.

Quero deixar claro que o título de artista é por minha conta. Toni jamais se referiu ao seu ofício como arte. Para ele sua função é a de um animador público, um circense de rua, resumindo: jamais pensou em uma auto-definição. Toni é. No princípio era o verbo. As invenções divinas ocorridas desde então não modificaram sua personalidade.

Se, por acaso, o cachê é curto, ou os motoristas fingem ignora-lo, Toni sente. Sente pena pelos enganos que desviam tais pessoas do lazer, da arte e, provavelmente, da própria vida. Mas, sua alegria está sempre lá. Foi devido a essa inabalável alegria que Dona Jurema (ou Tia Jurema, como eles a chamam), mãe de Augusto, decidiu pedir ao malabarista que incorporasse o filho no seu grupo.

“Não sei mais o que fazer com esse menino”, contou a mãe, “quer ser “ginastista”, fazer a tal de ginástica olímpica, mas vê se tem condições? Já falei pra ele que aqui não tem jeito; que tem que arrumar outra coisa, mas não adianta. Agora anda metido com aquela molecada lá do outro lado, daqui a pouco ta roubando também. Não tem como você levar ele contigo na parte da tarde depois da aula? Assim ele dá as piruetas dele por aí e sossega o rabo, senão eu não sei o que vai ser...”

Depois dessa conversa Augusto passou a ser a companhia diária do malabarista. Toni sente-se responsável em manter viva a esperança da criança que sonha em ser ginasta. Sabe que ele não gosta do ofício, assim como sabe que a menina ginasta que olha de dentro de um dos carros o malabares, faz a ginástica contra a vontade. Talvez queira ser tradutora, talvez já seja artista plástica, cozinheira ou qualquer outra coisa. Mas, a mãe a quer ginasta. Tratá-las-emos como mãe e menina porque o vidro fechado do carro não permitiu uma aproximação para perguntar-mos o nome; o rapaz no carro ao lado, que ouve um CD de Chico Buarque (não sei se o CD é inteiro do Chico ou é alguma "miscelânea", a música é "Brejo da Cruz") e veste uma camisa de Che Guevara, cujo único sentimento é medo que algum malabares caia no seu carro, chama-se Paulinho; mas isso eu sei porque o conheço de outros lugares; seu vidro também está fechado. “Não olha muito, senão a gente vai ter que dar dinheiro!”, adverte a mãe ao ver o fascínio que o malabarista exerce sobre a filha. O sinal abre (para as máquinas, fecha para os artistas) e os carros vão. Augusto quer a oportunidade da menina, a menina quer a liberdade de Augusto. Toni sabe que não existe liberdade, mas sente-se feliz. Aproveita o movimento dos carros para contar ao menino estórias que viu nas esquinas, que ouviu dos mais velhos. Ensina que pior que a pobreza material é a pobreza da alma. Mostra-lhe as várias moradas que existem entre o sonho e a frustração. A criança ouve com atenção. Sonha.

Em casa, a mãe da menina ginasta colaborará com crianças carentes. Para ela será um dinheiro bem gasto: caridade. Uma espécie de couvert para os artistas que animam o espetáculo. Uma ajuda para crianças que não incomodam. Não aparecem nos sinais, não levam odores ao alcance do seu olfato, nem exibem um linguajar chulo e incorreto. São representadas por artistas famosos, amparadas por “gente que faz”; nelas vale a pena investir. Basta uma ligação. Não é necessário conversar e nem há a ameaça de um contato maior. Finalizada a ligação estará certa de que faz, e de maneira impecável, a sua parte para melhorar o País.

No dia seguinte, no mesmo sinal, Toni e Augusto, Ogum e Oxóssi respectivamente, estarão lá: soldados incansáveis, na luta pela arte e pela esperança, defendendo, sem saberem, a espontaneidade e a alegria de um País em deformação.



* Eu sei que o tema “vocação artística do povo brasileiro versus robotização do capitalismo” não é novidade nos meus textos. Mas, antes que a minha criatividade depreciada, justifico-me argumentando que a exemplo dos pintores impressionistas tenciono abordar a mesma questão por ângulos, luzes e perspectivas diferentes; como Monet fez com a Catedral de Rouen e Van Gogh com os girassóis, só para cita alguns exemplos. Talvez, se a minha inspiração fosse barroca seria mais confortante, mas de qualquer forma prometo olhar em outra direção assim que o tema estiver esgotado, ou melhor, resolvido.

** Incluído no livro "Desconstrução" e publicado também no Jornal Página Dois (http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=3743 )

VALE DO RIO DOCE

Colo abaixo um e-mail que recebi de meu amigo Olavo Dáda, pela reestatização da Vale do Rio Doce, e que tem o meu total apoio .



Gentes, um dos maiores crimes cometidos contra o povo brasileiro e seu patrimônio durante a era FHC pode ser revisto.

Engajemo-nos na campanha do plebiscito pela retomada da Vale do Rio Doce, que ocorrerá entre 01 e 07 de setembro de 2007.

Invistam 15 minutinhos para assistir ao vídeo da campanha, divido em 3 partes.
Basta clicar em http://avaleenossa.org.br/video_ple.asp

Saúde & paz e fé no trabalho e no povo!

A VALE É NOSSA!

Bjs,

Olavo Dáda

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

EMPREGO

- Hoje é o dia mais importante da minha vida.

Rolando acaba de pronunciar esta frase mágica enquanto se prepara para mais uma entrevista de emprego.

Trancado no banheiro, o rapaz olha-se no espelho, suspira e mentaliza palavras que, segundo um autor de auto-ajuda cujo livro ele acabou de reler há alguns dias, servem para reforçar sua auto-estima. Mesmo depois de centenas de entrevistas, ele continua nervoso. Há anos tenta arrumar um emprego e não consegue. Quando digo emprego, refiro-me à carteira-assinada, férias, folga semanal e todos os direitos trabalhistas que na teoria são para todos, mas na prática funcionam como uma grife exibida por uns poucos, assim como o ensino de qualidade e os planos de saúde, e não os “bicos” que o oferecem. Aliás, em “bicos” Rolando tem vasta experiência.

Mas, agora tudo vai mudar. Rolando está confiante. A experiência em entrevistas, que adquiriu durante todos esses anos procurando emprego, aliada aos conselhos do livro do PHD. em recursos humanos será infalível. Enquanto veste a roupa, Rolando relembra os animais, frutas e personalidades com os quais deve identificar-se. Saber isso é de extrema importância. Identificar-se com o animal errado já lhe custou uma assinatura na carteira. Felinos nem pensar. A independência da espécie assusta ao empregador que prefere sempre a fidelidade desinteressada dos cachorros.

Rolando sai do banheiro e vai para o seu quarto. Pega a pequena redação que fez imaginando-se daqui a dez anos para reler no ônibus a caminho da entrevista. Quer ter firmeza quando falar sobre o futuro na frente do entrevistador. Pára. Está pensando no absurdo disso tudo. Não quer mais sorrir, se comparar a frutas e animais, falar de suas qualidades, expor os seus defeitos e argumentar para um comprador imaginário a venda de uma caneta sem tinta também imaginária.” Que se foda esse hotel!” (a entrevista é para um cargo em hotel de luxo).” Não quero mais fazer papel de palhaço. Chega de pedir pelo amor de Deus para trabalhar”.

Rolando se tranca no banheiro. Está pensando nas dificuldades da vida. Na falta de perspectiva. No vizinho que é irmão do gerente e pediu para que fosse convocado para a entrevista. Talvez esteja esmorecendo. Lembra-se dos conselhos do PHD. “Não desista”, foi isso o que ele leu em todos os livros que estudou na ânsia de conseguir um emprego. E agora ele pensa em desistir, talvez esteja na hora certa, no lugar certo e não está percebendo. Relê a redação e todas as mentiras que imaginou. Na verdade, o que ele quer daqui a dez anos é poder exercer a profissão de arquiteto, passa dias lendo sobre o assunto e elaborando projetos. Mas, disso já abriu mão, é impossível. Na cidade aonde mora não há faculdade pública de arquitetura e ele não tem condições financeiras de cursar uma universidade em outra cidade. Já que não é para ser o que o seu talento pede, então qualquer coisa serve. Não, não é qualquer coisa. É um cargo em um hotel de luxo com carteira assinada e todos os direitos trabalhistas. Enquanto seus dejetos estão se dirigindo ao esgoto, ele está se lembrando do número de currículos que foram entregues para o cargo. Chora. As lágrimas mais salgadas são aquelas que nascem da dúvida. Pensa em Lucio Costa e no PHD. Lembra-se de arquitetos que, como ele, também vivem de "bicos" . Maldiz o País, repete que hoje é o dia mais importante de sua vida e sai apressado, como um motoboy, em direção ao ponto de ônibus.

Rolando está lá esperando ansioso o ônibus que o levará à dinâmica. Pensa nas possibilidades que novo emprego lhe ofertará. Relembra dos sacrifícios pelos quais passou. Está indeciso quanto ao seu desempenho, mas procura pensar positivo. De vez em quando, lhe vêm à cabeça os projetos arquitetônicos que sonhava realizar quando criança. Lembra-se que até pouco tempo atrás imaginava que a sua arquitetura seria reconhecida no mundo inteiro, que seus projetos lhe valeriam o título de “Gaudí das Américas”. Já não está mais prestando atenção na leitura da tal redação, está pensando no projeto que desenvolveu com a ex-namorada Sônia no intuito de conseguirem uma bolsa de estudos e que ficou na gaveta porque não tiveram condições de terminar. Pra falar a verdade, mal começaram: os bicos de garçonete e vendedor de consórcios que faziam na ocasião não deixavam tempo para concluírem o projeto e as conversas sobre a politicagem na distribuição de bolsas os desanimaram. Nos dias de folga eles batalhavam para encontrar um emprego melhor. Sônia agora faz bicos numa loja de calçados. Não tem carteira assinada, mas a comissão é boa. Rolando volta à leitura. Não quer lembrar de mais nada. De mais ninguém. O mundo não precisa de sua arquitetura, ele será muito mais necessário aos hóspedes do hotel. Lá está sua grande chance. “O vencedor não pode se prender às derrotas, nem aos derrotados. Precisa olhar sempre adiante. E confiante”. O PHD. poderia ser poeta. O ônibus chegou.

Não iremos acompanhar Rolando porque será desagradável andarmos em um ônibus lotado, que faz um trajeto para o qual seriam necessárias três linhas, apenas para ver Rolando conversando com Rui, um amigo que desistiu da carreira de ator e se dirige mal-humorado para a portaria do edifício onde trabalha; “Pelo menos estou trabalhando, a situação não está para brincadeiras”, concluirá Rui antes de se dirigir, com dificuldade, ao fundo do ônibus para descer rumo ao destino que lhe escolheu; ao olhar o amigo, Rolando lembrar-se-a dos aristas negros transformados em plantadores de cana-de-açúcar e refletirá sobre a liberdade dos nossos tempos, depois voltará à leitura de sua redação. Quanto à entrevista e os acontecimentos futuros, eles podem ser adivinhados:

Ao olhar o hotel, Rolando constatará, de corpo presente, o mau gosto do arquiteto do prédio e esperará cerca de quarenta minutos até que a dinâmica comece. Durante esse tempo, passará a maior parte imaginando um projeto arquitetônico verdadeiramente artístico e olhará desconfiado para seus rivais, tentando imaginar os trunfos que eles poderão ter e comparando-os com os seus. Durante a dinâmica perceberá que todos estão tão desesperados e desnorteados quanto ele. Falará sobre si mesmo, dirá os objetos, frutas, animais e personalidades com os quais se identifica; dirá em voz alta e de maneira, que dê a entender que é improvisada, o texto sobre o seu futuro; explicará porque está ali, o que espera da empresa e no que pode ser útil. Perceberá que todos os entrevistados parecem ter lido o livro do Phd e falam da mesma maneira e se identificam com as mesmas coisas. Não fará nenhuma pergunta e nem escutará mais do que já sabe. Sorrirá o tempo inteiro e, se tiver sorte, não precisará participar de nenhuma brincadeira constrangedora.

Alguns dias depois será comunicado que foi aprovado na dinâmica e se submeterá a mais uma três entrevistas. Contará sobre sua vida, fará redações, dará mostras de espírito de liderança, iniciativa, polidez, entre outros atributos. Ficará com as bochechas doendo de tanto sorrir e será contratado.

Quando souber da notícia, ele e a família abrirão uma Sidra e chamarão o vizinho que o apadrinhou para comemorarem juntos. O vizinho dará conselhos e falará sobre o temperamento do gerente. Rolando falará da dinâmica e contará que desde que pisou no hotel pressentiu que seu futuro estava ali. Sua mãe fará um breve resumo da vida profissional dela e a avó contará sobre os empregos do avô e dos tios. A irmã relatará o emprego do namorado e contará sobre o concurso para o qual estará estudando. A mãe dará graças a Deus e anunciará o início de um novo ciclo na família. Darão como favas contadas o ingresso da irmã no cargo público. Um grande amigo telefonará dando os parabéns e aconselhando o melhor carro para comprar. Os dois passarão mais de três quartos de hora falando sobre as possibilidades de “motorização”.
Rolando não dormirá na véspera do primeiro dia de trabalho imaginado o novo cargo, as atribuições, responsabilidades e direitos que o esperam. Fará atencioso o curso de treinamento para a função, assim como participará de todas as reuniões motivacionais que a empresa proporcionar-lhe. E será infeliz...

Perceberá, logo no início, que a dedicação e desempenho que o hotel exigirá tornarão inviável qualquer tentativa humanamente suportável de voltar aos estudos ( e nisso não excluímos a questão monetária), que a sombra da demissão sobrevoará constantemente sobre ele e que valorizar o emprego que conquistou com tanta dificuldade (a mídia fará questão de não o deixar esquecer que tem uma fila imensa de pessoas querendo o emprego dele) significará aumentar “voluntariamente” sua jornada de trabalho, estar sempre de acordo com as regras e buscando o melhor para a empresa, em detrimento do que é melhor para ele; esquecer que existe final de semana, feriados e dias santos, para efeito de folga, como é claro; deverá estar sempre disposto e feliz; nunca desistir de galgar “degraus acima” e jamais demonstrar sinais de cansaço. O que é uma contradição, já que o dono do hotel anda dizendo por aí que, por muito menos, ele mesmo já cansou.