terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O HOMEM DA MÁQUINA

Robério tinha pouco mais de cinqüenta anos de idade quando se deu o acontecido. Passaram-se mais de meses sem que a cidade falasse em outra coisa. Hoje, anos depois do fato ocorrido, sua estória é apenas um caso corriqueiro que apenas os bem idosos se lembram como digna de prosa.
Para falarmos do fato que tanto mexeu com a cabeça da cidade (cujo nome não revelarei, com o intuito de evitar dissabores e não tirar o privilégio do leitor de imaginar, visto que a imaginação é um dos maiores prazeres da leitura), é necessário tratarmos antes da vida do homem.

Robério viveu na tal cidade desde que nasceu. Bom menino, sempre se aplicou nos estudos e quando rapaz nunca foi de extravagâncias, prova disso é que após dois anos de relacionamento casou com Eugênia, sua primeira namorada. Quanto à profissão, nunca teve problemas em escolher: seu pai, o tenaz comerciante Álvaro Tostão era dono do “Empório Espartano” e Tostãozinho sabia desde tenra idade que seria o sucessor e prosseguidor dos feitos do valoroso pai. Portanto, a vida correu-lhe sempre de forma previsível, linear como um domingo chuvoso. Até que um dia, por volta de seus vinte e dois anos, ele descobriu a tal máquina.

Ninguém sabe explicar ao certo como foi. O que se sabe é que um belo dia (talvez não estivesse nem tão belo assim, mas sabe como é a mania do povo de adjetivar tudo), o, já então, dono do empório apareceu transbordando de alegria com a tal máquina. Passou o dia admirando o encantador objeto e mostrando aos amigos (sempre teve poucos) que apareceram por lá, fazendo questão de realçar suas qualidades e utilidades. Chegou a dizer que aquilo equivalia ao retorno de D.Sebastião. Em casa não falou de outra coisa com Eugênia e chamou o filho para apresentar-lhe o novo membro da família. Dizem as más línguas, que sua alegria naquele dia foi tanta a ponto dos gêmeos, David e Golias, terem sido gerados durante a noite, num espasmo de alegria que acordou três vizinhos e um galo.

Daí em diante a vida de Robério Tostão mudou. Como que hipnotizado, ele não largou mais a máquina um só minuto. Passava o dia inteiro cultuando-a, a ponto de negligenciar completamente os afazeres do empório e esquecer a família. Não foram poucas vezes em que foi surpreendido, nas primeiras horas do dia, ainda com a mesma roupa do dia anterior e vidrado na tal .

Quando os gêmeos nasceram, seis meses depois de gerados, ele recebeu a notícia sem tirar os olhos da dita cuja. E quando eles morreram, Golias viveu quatro dias e David seis, ele chorou abraçado na sua companheira extraconjugal. Eugênia, em um primeiro momento tentou trazer-lhe de volta pela razão. Esgotados os argumentos, partiu para a fé: fez promessas para todas as qualidades de Nossa Senhora, fez vigílias em templos evangélicos, consultou búzios e dois meses após um despacho nos trilhos do trem, decidiu pedir a separação. Não podia mais conviver com um homem que relegava a família a um segundo plano e vivia exclusivamente para a bendita máquina.

O marido aceitou de pronto a idéia e ainda colocou o empório à venda. Pediu à esposa que o deixasse morar na garagem, com a sua máquina, e dividiu o dinheiro do empório entre ela e os filhos. Eugênia aceitou servir-lhe duas refeições por dia, de modo que a parte dele na venda seria usada apenas para a conservação de sua relíquia.

Os anos passaram-se e Robério Tostão quase nunca foi visto longe de sua preciosidade. Quando Eugênia, monofóbica como tantas, casou com Charles (dizem por aí que os dois já andavam de caso quando ela ainda estava casada) e decidiu-se mudar para uma casa mais ampla e melhor localizada, ele não se moveu do seu refúgio.

Sua vida resumia-se a máquina. Era ela a emoção de seus prantos, a causa de seus risos, a fonte de suas preocupações, a razão de suas noites mal-dormidas. As crianças da vizinhança puseram-lhe o apelido de ”homem da máquina”, nome pelo qual certamente ouviam os pais se referir ao antigo dono do empório, e sempre que alguém o encontrava pela rua tratava de fazer algum comentário relativo ao alvo de sua adoração.

Foi na época do casamento de seu filho Juscelino que se deu o acontecido:

Robério não respondia mais aos amigos que lhe visitavam. Seus movimentos e reações eram sempre obedecendo aos comandos da máquina. Quem percebeu isso com mais astúcia foi Teodoro, amigo que morara muitos anos em Frankfurt, dizendo que a tal máquina havia absolvido totalmente a alma do pobre homem. Na época todos disseram que o “alemão” estava exagerando e que o comerciante apenas valorizava aquilo que conseguira adquirir como fruto de seu trabalho suado. Porém, as “rabugices” se concretizaram: só quem movimentava Tostãozinho era a máquina que ele julgava ser dono.

Foi nesse estado que o filho o deixou depois de entregar o convite de seu casamento. Pai e filho mal conversaram durante a visita. O pai totalmente submerso no mundo da máquina que naquele momento era o dele também e o filho tentando encontrar uma forma de se integrar ao “mundo-máquina”, apostando que assim poderiam se entender. Que nada! Juscelino saiu abatido, como se a sua raiz, a pessoa que lhe trouxe ao mundo nunca tivesse existido, como se a família Tostão fosse apenas um veículo para viabilizar a missão da máquina na Terra.

Dois meses depois, quando voltou à garagem, encontrou tudo como deixara. Exceto o pai. Abriu a porta e viu a máquina que jazia solitária no seu lugar de sempre. Em nenhum canto da tal garagem havia indícios da existência de seu progenitor. Quem entrasse ali naquele momento juraria que apenas a máquina vivera naquele lugar. Robério fora engolido, apagado de sua existência. Desaparecera para sempre e ninguém sabe como. O homem havia sucumbido aos delírios. Partiu de vez para o falso mundo prometido pela sua musa. O filho, perplexo, olhava para a Melpómene do seu criador, sem saber qual era o papel de quem naquela confusa trindade. Atônito, riu e chorou o destino dos Tostões.

Hoje em dia, nenhum membro da família Tostão reside na cidade. Juscelino emigrou, fazendo assim o caminho de volta do velho Álvaro. No endereço do empório existe uma franquia de lanchonete internacional e a casa, onde na tal garagem deu-se o misterioso sumiço, deu lugar a uma loja de departamentos.

Algumas entidades religiosas tentaram transformar o sumido em mártir, outros chegaram a psicografar mensagens com a sua assinatura e houve até vigílias para que o demônio que se apossou do desaparecido não tomasse conta do local. Estudantes levantaram teses e sociólogos escreveram artigos, à luz de teses que lhe garantissem notoriedade (muitos que pregaram o quão pernicioso era a relação do homem com a máquina, hoje a defendem sob o argumento de que os tempos são outros).

Se o homem ainda é lembrado deve-se a máquina. Quem for a tal localidade, constatará que a tal, hoje popularizada, exerce o mesmo fascínio em quase todos os moradores e o acontecido com a família Tostão é, quando muito, um assunto pueril.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

CANTO

Sexta-feira, manhã de sol, mês de novembro. Nos jardins da praia, um pássaro canta nas imediações do canal 3. Seu som é alto, não é preciso dinheiro para ouvi-lo cantar. Pode ser ouvido da avenida. Os carros, sempre imersos em seus CD Players e atormentados pelo trânsito infernal, permanecem indiferentes, mas os transeuntes demonstram interesse em conhecer o autor do surpreendente assobio.

O pássaro está em pé na areia. Tem o peito nu, a barba por fazer, o dorso bronzeado e as calças frouxas revelam os pêlos pubianos. Um homem cordial tentando restituir à natureza a alegria subtraída pela humanidade. Não dará autógrafos nem será assediado. Sua música é orgânica, contemplativa. Sua sensualidade não é fabricada por publicitários. Seu desleixo é rude, não arquitetado.

Rapidamente, o canto multiplica-se. Outros, atraídos pelo som do irmão solitário, respondem-lhe alegres e solidários. A resposta não vem da areia, nem do mar, tampouco das árvores do jardim. Vem do outro lado da avenida. De um prédio em construção. Um ninho de joões-de-barro, ou joões-de-cimento (construtores da moradia alheia), que se não prenunciam bons tempos com seus cantos ao menos nos trazem à lembrança um tempo onde as manhãs eram animadas pelos pássaros.

É um espetáculo alegre e harmônico. Da areia, o flaneur inicia o canto que encontra eco na obra. Cada qual do seu posto, um por vez, os pássaros em serviço respondem ao contato do maestro. A princípio alguns e em instantes dezenas de outros cantos são construídos paralelo ao prédio. Quando cessam, o nosso Orfeu, na areia, entoa um novo número que, como numa torcida organizada, rapidamente se propaga. Um instante fugaz de espontaneidade. Uma breve vitória da Santos sobre a $anto$, do Brasil sobre o Bra$il.

Os cantores seguem até saciarem-se. Não há jornalistas no local. A apresentação não estará nos informativos regionais, muito mais interessados em divulgar a violência e polarizar eleições do que procurar a ternura que não está perdida. O canto é deles para eles. Solidários na exclusão, na alegria e na autenticidade. A voz da massa.

Dois turistas estrangeiros divertem-se com o show. As árvores que aqui gorjeiam em nada se parecem com as de lá. Não há flashs. O espetáculo não cabe nas lentes. Os bebês que passeiam pelos jardins com avós, mães, pais e babás entram em contato com mais um canto da natureza. Ficará no subconsciente. Até quando haverá pássaros para embelezar suas manhãs?

O canário embriagado pára o canto, Baudelaire iletrado, com seus paraísos artificiais, segue cambaleante pela areia para juntar-se ao bando e deitar-se nos bancos próximos à Concha Acústica (vista como mau agouro pelos moradores dos prédios vizinhos na ocasião de sua inauguração).

Os joões-de-barro também cessam. Precisam dedicar-se à construção dos lares que nunca serão deles. Talvez tenham até sido repreendidos pelo chefe por causa da “bagunça”. Os olhos embotados de cimento e lágrimas seguem a construção cuja porta está voltada para o leste. Não tardará o dia que o alegre ninho dará lugar a um prédio cínico e silencioso na sua aparência embora cheio de alegrias, inseguranças e angústias represadas em seu interior. Imagem e semelhança de seus futuros moradores. Representante fiel de sua vizinhança.

Ao fim da tarde, nosso Ulisses ainda flanava pela cidade. Não mais cantava, falava sozinho e comia um pão despedaçado, como convém aos pássaros. Indiferente ao mundo indiferente, dirigia-se aos bares da Pompéia para molhar o bico com água que dizem que passarinhos não bebem. E, cantarolando um samba qualquer, seguiu sua odisséia. De homem e pássaro. De deus e espermatozóide.

* Publicado também no jornal "Página Dois" ( http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=4341)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

POETIZANDO (DEZEMBRO/07)

A edição de verão da revista literária POETIZANDO nº. 27, terá seu lançamento no dia 14 de dezembro de 2007, das 20 às 22 horas, com sarau poético aberto ao público, na sede da Aliança Francesa de Santos.
A revista POETIZANDO é editada pelos poetas santistas Eunice Mendes e Walmor Colmenero e apresenta poemas, contos, crônicas, biografias, lendas, letras, folclore, etc. Entre outros nomes da literatura universal, figuram nesta edição: Fernando Pessoa, Euclides da Cunha, Victor Hugo, Catulle Mendés, Quevedo, Oscar Wilde, Marquesa D'Alorna, Júlio Herrera Y Reissig, Antero de Quental, Lima Barreto, Luciano de Samosata, etc. A seção dos autores contemporâneos apresenta: Carlos Cassel, Madô Martins, Anderson Braga Horta, Sérgio Bernardo, Nina Rodrigues, Glauco Mattoso, Cleberton Santos, Benilson Toniolo, Marcelo Lopes, Rogério Salgado, Leandro Rodrigues, etc. No sarau serão lançadas também as folhas poéticas O POETA e A POETISA e haverá sorteio de kits com material literário. A entrada é franca.
A Aliança Francesa fica na Rua Rio Grande do Norte 98 – Pompéia – Santos/SP – Fone: 3237-2403
Maiores informações:
http://www.revistapoetizando.blogspot.com/

Aproveito a ocasião para relançar o texto METAMORFOSES, de minha autoria, que estará na edição de dezembro da Poetizando.
Um humilde aperitivo.

METAMORFOSES

Semi analfabeto em país de analfabetos vira professor;
Curioso em país de ignorantes vira doutor;
Bandido em país de criminosos ganha cem anos de perdão;
Política no país dos mensalões vira profissão;
Vendedora no país do consumo vira rainha;
Drogas em país sem lei é farinha;
Travesti no país da mentira vira mulher;
Espoliação em país sem governo vira imposto;
Emprego no país da informalidade vira exploração;
Favela no país do turismo sexual vira ponto turístico;
Assentamento no país do latifúndio vira invasão;
Alimentação em país de esfomeados vira plano de governo;
Esporte no país do despreparo vira comércio;
Violência no país da injustiça vira espetáculo;
Teatro no país das concessões vira shopping center;
Seção de senado em país de espectadores vira programa de auditório;
Jornalismo no país da alienação vira fuxico;
Malha ferroviária no país das transportadoras vira sucata;
Música em país sem harmonia vira batuque;
Impunidade no país do jeitinho vira imunidade;
Habitação no país dos sem teto vira sonho;
Lixo no país do desperdício vira comida;
Cesta básica em país de desempregados vira prêmio;
Férias anuais no país das terceirizações viram privilegio;
Rio em país de merda vira esgoto;
Quer mais? Leia os jornais...