terça-feira, 29 de abril de 2008

SANTO OFÍCIO

Ah, a propaganda!
Santificado é o seu nome.
Da mesma forma que a filosofia guiou as idéias e pensamentos do século XVIII, nesta nossa Idade Mídia, em que a sofrida Mãe Terra se transformou numa imensa bolsa de valores, é a propaganda quem determina o pensamento contemporâneo.
Sob a sua influência, quantos crimes compensaram? Quantos satélites foram invadidos? Quantos muros se ergueram e quantos caíram? Quantos imbecis se tornaram gênios e quantos gênios foram malditos? Quantos reis e rainhas foram coroados e quantos fenômenos foram criados? Quantas línguas morreram e quantos deuses deixaram de existir?
É ela a serpente que induziu o homem a provar o seu fruto proibido e viver condenado a ganhar o pão com o suor do seu rosto. Como se não bastasse comer o cérebro dos mortais, ela toma o lugar dos sentidos, regendo a seu bel prazer o olfato, a audição, a visão e até mesmo o tato dos incautos, vítimas preferenciais da sua lobotomia.
Santa propaganda! São os seus milagres que transformam entretenimento em arte, repressão em liberdade, pão em brioche, negociata em justiça, lixo em luxo e ambição em religião. São as suas obras que anestesiam a mente do homem condenado a permanente atividade e desvario. São os seus interesses que estipulam a estética, a fé, a saúde, o lazer, os ideais e as ambições do censo comum. É por sua mão que o belo passa a ser feio e o inconcebível, real.
Tantas vidas mal vividas, tantas famílias desfeitas, tantos talentos desperdiçados, tanta fome, tanto tédio e tanto vício, para que sempre seja feita a sua vontade.
Cervantes definiu a pena como a língua da alma. Basta lermos nas entrelinhas (nem sempre é preciso tanto) para constatarmos que a escrita dos nossos escritores, jornalistas, cronistas e de tantos outros é a língua da alma do negócio.
E em nome dessa beatitude é que no país movido pelas agências de criação, ferir a liberdade de expressão é proibir publicidade de cerveja na televisão.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

DIA MUNDIAL DO LIVRO

Dia 23 de abril é o dia mundial do livro.
Um país se faz com homens e livros, disse Monteiro Lobato; mas talvez falar de livros em um país que tem mais editoras que livrarias talvez não signifique exatamente a construção de um país. Mesmo com todos os festejos e ações que a UNESCO promove em países do mundo inteiro para celebrar a data que ela instituiu em 1995, o mais importante é lembrarmos o que ela significa:
No dia 23 de abril do longínquo (nem tão longe assim) ano de 1616, dois gênios das letras deixavam o nosso planeta:
Shakespeare e Cervantes. Hamlet e D.Quixote de La Mancha. Romeu e Julieta e O curioso impertinente.
Gênios tais que se confundem com as lendas;
Gênios tais que sobrevivem 400 anos depois de suas mortes;
Gênios tais que seus personagens adquiriram vidas próprias e romperam a barreira do tempo. A prova disto é que hoje, séculos depois das mortes de seus criadores, não é difícil encontrar pessoas que se identifiquem com a inadequação de D.Quixote com o tempo em que vivia ou com a rebeldia contra as normas sociais representadas pelo casal de personagens mais famoso do teatro.
Cervantes lutou em guerras, foi prisioneiro na Argélia, perdeu a mão esquerda e criou o melhor livro de ficção de todos os tempos, antecipando-se ao realismo. Shakespeare levou uma vida discreta, o que colabora com as lendas quanto a sua existência, pariu o teatro moderno e, séculos depois, emprestou seus personagens e conflitos para servirem como base para os estudos de Freud e Lacan.
Hoje, na era digital do excesso de informação e variedade de conceitos, é sempre oportuno refletirmos onde estão nossos pares para Shakespeares e Cervantes.
Estarão tentando romper a barreira dos intere$$es editorais e midiáticos? Combatendo em alguma guerra absurda? Interessados apenas nas suas, como disse Capinan, vida in vitro feita nas coxas e vivida às pressas? Preparam no subterrâneo da nossa Idade Mídia uma obra-prima? Ou esqueceram-se de serem o que são e tentam ser Shakespeare e Cervantes?
De qualquer forma, nada mais justo para o dia do livro que a data em que perdemos duas das maiores forças literárias que a raça humana produziu.
Parabéns Miguel! Parabéns Willian! Parabéns a todos, gênios ou não, que rompem a barreira do cotidiano e se aventuram pela dor e delícia do mundo das letras!

*Publicado também no jornal Página Dois (http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=4883)

terça-feira, 22 de abril de 2008

SINAIS

Sinal vermelho. Pare. Sinal verde. Contramão. Velocidade máxima permitida. Travessia de pedestres.

Para que servem as sinalizações? Por que existem leis de trânsito? É óbvia a resposta que as leis, no caso do trânsito, servem para assegurar uma convivência harmoniosa. Mas, no caso do que vemos pelas ruas do Brasil a afirmativa pode bem ser interpretada como falsa. Se na teoria todos aparentemente concordam com a afirmativa, na prática quase ninguém as respeita. Resultado: o caos.

Talvez o nosso trânsito seja a demonstração cabal da selva em que ainda vivemos, dos selvagens em que nos transformamos e da fraqueza da nossa civilidade. No país do “quem pode mais chora menos” e “cada um com os seus problemas”, o descalabro instalado em nossas avenidas, ruas e rodovias é a metáfora perfeita do individualismo reinante. Aí está a conseqüência do tão aclamado jeitinho: salve-se quem puder.

Como esperar de uma população que não consegue respeitar um código tão elementar para a convivência pacífica como o de trânsito a construção de uma grande nação? Como falar em cidadania, democracia ou o que quer que seja para quem não consegue respeitar uma faixa de pedestres? O número de acidentes com mortos, cuja causa é o desrespeito às mais elementares leis de trânsito, dá para preencher a nossa televisão com programas diários, desses que gostam de espremer o sangue das vítimas da nossa selvageria ou até mesmo alguma produção com o intuito de conscientizar e sociabilizar, coisa raríssima de encontrar nas nossas emissoras ( mais preocupadas com os próprios interesses que com as obrigações perante o país que lhes deu a concessão), sem necessidade de reprise.

Quem é o culpado? O governo? O sistema de educação? A má distribuição de renda? Não. A culpa é do individualismo que rege a vida nacional. A culpa é da falta de sensibilidade pelos interesses do próximo, dessa lei da selva onde somente os fortes sobrevivem (no trânsito, a preferência nunca é do pedestre) e cada um visa apenas os seus próprios anseios. Aonde as nossas classes “A” e “B” enfiam toda a sua elegância, esclarecimento e sensibilidade quando a bordo de seus automóveis (muitos deles importados) cometem atrocidades dignas de deixar boquiaberto o exército de Átila?

É esse individualismo burro, que muitos gostam de intitular malandragem, a causa do nosso caos. É através dele que elegemos nossos governantes, que educamos nossos filhos, que parimos a guerra urbana que se instituiu em nossas metrópoles. E regidos pelos mesmos individualismos é que tentamos encontrar as soluções. Pra que buscar soluções? Pra que mostrar solidariedade com as crianças assassinadas quando desprezamos os vivos? Pra que tentar buscar soluções para a paz quando a nossa única preocupação é com a nossa própria segurança? Pra que discutir quando começa a vida se a partir do nascimento somos todos moldados segundo a doutrina do “cada um por si”? Pra que discutir política quando o nosso único interesse é pela nossa própria estabilidade em detrimento de qualquer tentativa de se construir uma nação de verdade? Será que as regras de respeito e convívio são tão desbaratadas para nós como eram as leis da cavalaria para os contemporâneos de Cervantes?

Não foi pensando nos pequenos interesses individuais, nem na mesquinharia dos oligarcas que os E.U.A. (que gostamos tanto de nos comparar) se tornou independente e firmou-se como nação. Mesmo com o egoísmo aguçado pelo capitalismo, o sentimento de coletividade, de patriotismo é o que impulsiona o País. Se Fidel deixa o governo de Cuba com a certeza de que sua Universidade-Ilha jamais voltará a ser um balneário é porque sabe que os ideais da revolução deixaram para a população a certeza de que o coletivo é mais forte que o individual.


Enquanto em nossas vias continuarem circulando a barbárie do nosso personalismo, nenhum partido, religião ou sistema nos livrará da realidade fabricada pelo nosso egoísmo e aqui será sempre, como bem disse Torquato Neto, o fim do mundo. O país dos heróis sem caráter de Mario de Andrade, do “sabe com quem está falando?” de Roberto da Matta, da corrupção, das brigas de torcida, da bala perdida, da dengue, do seqüestro relâmpago, do coronelismo, do legal-imoral, da “pilantropia”,dos engarrafamentos e de toda a sorte de catástrofes que o desrespeito ao próximo pode causar.