segunda-feira, 10 de novembro de 2008

CRIANÇARTE

A criança trabalha.

Arquiteta sua arte com areia e água. Água e sal. Brinquedos. Trabalha com o sol, com o vento e com os aromas. Sua arte possui uma estética própria. Não se prende às regras ou convenções. Constrói para desconstruir e recomeçar.

Do castelo surgem cidades, alegrias, mares e pontes. Sonhos que guiam a breve brincadeira. Depois de sonhar, desconstruir e recomeçar. Não importam as opiniões, - “Que lindo!”, “Esse tá feio, faz de novo” - o sentido é apenas o jogo de fazer e desfazer. Sem linhas retas. Sem princípio nem fim. Sem deus nem dúvidas. Livre de conceitos ou pretensões. Apenas criar. Divertir-se. Preencher-se. Viver.

Ama sem racionalizar o amor. Vive sem saber que morre. Aprende sem saber que ensina. Ilumina inconsciente de sua luz. É rei na sua anarquia. Paz sem sombra de guerra.
O mundo do concreto ainda lhe é estranho. Seu contato maior é com o mundo dos sentidos. Com o sensorial. Que lembranças ainda trará do mundo uterino? Quais sobreviverão à permanente erosão causada pelas chuvas de opiniões externas? Quais sucumbirão?

Sua brincadeira é arte. Liberdade. Dionísio sem Apolo. É Hermeto e seus experimentos. Van Gogh e suas tintas. Seus amarelos. Tom Zé e seus instrumentos. A roda de Duchamp. As pedaladas de Robinho. A pedra no caminho de Drummond. Não há perpetuação. Nada está estabelecido e a beleza é um momento fugaz. Despretensioso. Lança mundos em um mundo que não se sabe mundo. Um universo paralelo. Um paraíso artificial.

Chegará o dia da expulsão do paraíso do livre pensamento e ela será condenada a vagar pelo mundo dos pensamentos pré-concebidos? Trocará sua livre expressão pelo raciocínio pré-estabelecido pelas religiões, ideologias e os grandes meios de idiotização? Ou conseguirá matar o minotauro da ganância e, guiando-se pelo novelo da evolução, escapar do labirinto do individualismo e da ignorância?

De suas decisões depende o mundo. A nossa esperança de futuro. “Vinde a mim as criancinhas”. Só um mundo formado pela autonomia da imaginação infantil será capaz de sobreviver. De lançar novas alternativas ao modelo arcaico dessa socialização violenta sempre em busca da homogeneidade. Só uma geração de erês será capaz de varrer as teias de aranha do mundo uniforme das guerras e destruições e plantar as sementes de gentileza e diversidade.

Como um Deus criança, ela brinca de criar. Cria significante e significados. Céus e estrelas. Amigos e seres. Fonemas e ritmos. Mágicas e receitas. Transforma a panela em chapéu, a areia em castelo, bicho em gente, idoso em criança, açúcar em sal, meia em bola.

Os adultos observam.

Brincam de pais. Brincam de educar. Brincam que a vida é séria e que a idade, por si só, traz sabedoria.

A criança ri.

* Publicado também no blog dulixo ( http://dulixo13.blogspot.com/2008/11/crianarte.html)

ABRAÇO NA LAGOA (15/11/08)

Sábado, 15 de novembro, aniversário da Proclamação da República.
Dia de cidadania. Dia de abraçarmos a lagoa da saudade.
Dia de reinvidicarmos esclarecimentos sobre as torres que serão erguidas "na cara" do nosso patrimonio.
Para que Santos continue linda vamos dar aquele abraço na lagoa.
Sábado, 15 de novembro às 16 horas
E quem ainda não assinou a petição, assine:
http://www.petitiononline.com/soslagoa/petition-sign.html

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

PROGRESSO

No meio da esperteza internacional
a cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
(Chico Science/A cidade)


O que é o progresso? Qual o real significado desse termo tão freqüente na vida dos brasileiros, presente inclusive em nossa bandeira?

O dicionário Caldas Aulete traz em seu verbete “progresso” (no sentido que trataremos) o seguinte significado: Processo de crescimento e enriquecimento de uma região, um país etc.; desenvolvimento.

Segundo o senso comum uma pessoa que progride é aquela que atinge uma boa situação financeira e social, ou seja, consegue emprego estável, “mora bem”, possui carro do ano (objeto de primeira necessidade), plano de saúde, adquiri certo grau de instrução, viaja nas férias e freqüenta cinemas, teatros, restaurantes, etc.

Acontece que trabalho, educação, moradia, saúde e lazer de qualidade são direitos sociais assegurados a todos pela Constituição brasileira. Sendo assim, como pode alguém progredir porque conseguiu uma posição que deveria ser o seu ponto de partida? Ora, se uma sociedade vê como progresso o acesso a direitos que a carta magna do país garante a todos é porque boa parte da população não tem seus direitos validados. Ou seja, o poder público não dá conta dos direitos sociais elementares da população.

Como podemos pensar em progresso antes de suprirmos essa deficiência? Ou melhor, antes de fazermos valer nossa própria Constituição? Pior ainda, como podemos entender como progresso projetos que além de não colaborarem em nada para tais direitos vão no sentido oposto, comprometendo a qualidade de vida de parte da população dificultando o fornecimento de serviços básicos como o fornecimento de água por exemplo?

Como já dizia Fernando Sabino, “democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida, quanto ao ponto de chegada, depende de cada um”; portanto não será possível construirmos uma nação livre, justa e solidária enquanto todos não partirem do mesmo ponto.

Numa época em que a consciência ecológica, a luta pela preservação da natureza e o cuidado com o meio ambiente estão cada vez mais presentes, e, a cada dia, mais urgentes, será possível que alguém ainda entenda uma obra responsável por desmatamento, afugentamento de fauna e degradação ambiental como sinônimo de progresso?

O médico, antropólogo, sociólogo e escritor pernambucano Josué de Castro (uma das mentes mais brilhantes do nosso país no século passado e que – talvez em virtude de - permanece desconhecido para a grande maioria da nossa população) escreveu um ensaio essencial para entendermos a questão do desenvolvimento, ou seja, do progresso:

...” falso é o conceito de desenvolvimento avaliado unicamente à base da expansão da riqueza material, do crescimento econômico. O desenvolvimento implica mudanças sociais sucessivas e profundas, que acompanham inevitavelmente as transformações tecnológicas do contorno natural. O conceito de desenvolvimento não é meramente quantitativo, mas compreende os aspectos qualitativos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa; desenvolver é outra. Crescer é; em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil...”

E concluiu dizendo:

“Só há um tipo de verdadeiro desenvolvimento: o desenvolvimento do homem. O homem, fator de desenvolvimento, o homem beneficiário do desenvolvimento. É o cérebro do homem a fábrica de desenvolvimento. É a vida do homem que deve desabrochar pela utilização dos produtos postos à sua disposição pelo desenvolvimento.”

Em nome do desenvolvimento da cidade de Santos, eu apelo para o prefeito Papa e para a Câmara de vereadores que revejam a “lei de uso e ocupação do solo” e peço mais uma vez aos santistas que querem ver o progresso (real, não de fachada) da nossa cidade que assinem a petição criada pelo grupo S.O.S. Lagoa que solicita esclarecimentos quanto às prováveis conseqüências advindas das torres que serão (?) construídas no morro da Nova Cintra em frente à Lagoa da Saudade, afinal não é possível que a vida dos moradores do local, e de todos os santistas (a Lagoa e a área verde dos morros são patrimônio ecológico da cidade) seja prejudicada simplesmente para atender aos interesses de uma minoria.

http://www.petitiononline.com/soslagoa/petition-sign.html

sábado, 25 de outubro de 2008

S.O.S. LAGOA

Cinco torres com 14 andares.
Esse é o novo empreendimento imobiliário (quanta bobagem!) da cidade de Santos endossado pelo "herói" Papa e seus vereadores como "obra de interesse social".
Sabem aonde?
No Morro da Nova Cintra.
E como se não bastasse o caos viário e de qualidade de vida (haverá água para todos no verão? e o esgoto?) que o "complexo" irá causar no local (só vejo vantagem para a construtora) ainda tem um outro detalhe: o "residencial" fica em frente à Lagoa da Saudade.
Quer dizer: numa época em que nunca se falou tanto de preservação do meio ambiente, o governo santista aprova um projeto, repito: sob a alegação que é de interesse social, responsável pelo desmatamento de área verde no morro, além de afugentamento de fauna e degradação da lagoa.
Isso é de interesse social?
Prejudicar um ponto turístico do nível da lagoa (que sabe-se lá porque, não é considerada como tal), a nossa população e os turistas da cidade (mesmo se muitos chegam e partem daqui sem saber da existencia de tal ponto) a troco de que?
O que fazer?
Assistir ao levantamento das cinco torres resmungando?
Esperar novas propagandas e continuar a fingir que a nossa cidade é a que vemos na publicidade?
Pedir um terceiro mandato para o Papa?
O S.O.S. Lagoa (um grupo formado para defender a Lagoa da saudade de tal empreendimento) está fazendo circular um abaixo-assinado para o Ministério Público para que sejam promovidas audiências públicas junto aos moradores do Morro da Nova Cintra e de Santos, para detalhar e rever os estudos existentes, apresentando esclarecimentos sobre os impactos ambientais na vizinhança e no trânsito decorrentes deste empreendimento.
Há um projeto para a revisão da "Lei de uso do solo" na cidade,mas os vereadores governistas (muitos deles reeleitos) esvaziaram a última sessão evitando assim a votação.
Vamos assinar enquanto ainda há tempo (será?):

http://www.petitiononline.com/soslagoa/petition-sign.html

Para quem quer saber mais sobre o S.O.S. Lagoa e os efeitos que essa nova trapalhada pode causar:
http://soslagoa.com.br/blog/

terça-feira, 14 de outubro de 2008

RECICLAGEM

Escrevi "Reciclagem" como homenagem - e total adesão - ao trabalho feito pelo meu amigo Jefferson Tubarão e seu blog dulixo. A rapaziada faz um trabalho nas escolas e periferias ensinando as crianças a transformarem lixo em arte (não arte em lixo como está na moda) além de manterem o blog aonde dão espaço para artistas que não têm espaço. Quem quiser saber mais sobre o belo trabalho dessa galera é só acessar: http://dulixo13.blogspot.com/


RECICLAGEM

Do esperma reciclado faz-se vida;
Do arroz reciclado faz-se bolinho;
Da careta reciclada faz-se riso;
Do vírus reciclado faz-se vacina;

Do novelo reciclado faz-se casaco;
Da areia reciclada faz-se castelo;
Do louco reciclado faz-se gênio;
Do discípulo reciclado faz-se mestre;

Do inverno reciclado faz-se primavera;
Da erva reciclada faz-se chá;
Do country reciclado faz-se rock;
Do almoço reciclado faz-se jantar;

Do sapo reciclado faz-se príncipe;
Da debutante reciclada faz-se noiva;
Da paisagem reciclada faz-se quadro
E do lixo reciclado faz-se arte;

Arte do lixo,
Criatividade reciclada
Apartando arte de lixo
Extraímos do lixo a arte.

Publicado também no blog dulixo (http://dulixo13.blogspot.com/2008/10/palavras-de-uma-mente-reciclada.html)

sábado, 11 de outubro de 2008

100 CARTOLA

Dia 11 de outubro de 2008. Dia de o Brasil comemorar cem anos de nascimento de Angenor de Oliveira, o Cartola.
Um século de Cartola. Um século de poesia verde e rosa. De seu samba cadenciado. Um século do divino cavalheiro.
Cartola foi o verdadeiro poeta marginal. Era o malandro daquela tal malandragem que Chico Buarque constatou já há muito tempo que não existe mais. Sempre viveu à margem da sociedade que o consumiu, só gravou o primeiro LP aos 65 anos e nunca entendeu como uma música (para ele compor era tão natural quanto qualquer necessidade fisiológica) podia ser comercializada. Vendeu suas composições sempre a preço de banana. Quantas belas músicas creditadas a outros compositores não saíram da mesma cabeça que criou “As rosas não falam”?
Cartola era majestade. Sua poesia continha a altivez da realeza. Com suas tintas mostrou a beleza da alvorada do morro que transformou em sua sala de recepção, com seu olhar arguto ensinou que o mundo é um moinho triturador de sonhos mesquinhos, que todo pranto tem sua hora e que é negra toda a tristeza nessa vida. Seu samba fez escola Em 1980 decidiu andar e foi por aí...talvez esteja atravessando todo o universo com a mesma roupagem que saiu daqui.
Seu destino foi parecido com o de outros mestres (como Van Gogh e Fernando Pessoa) e tantos artistas: o de não obter conforto material com o dinheiro de suas obras.
Como bem definiu Nelson Sargento, “o Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve.”.
Hoje o sonho faz um século.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

COMENTÁRIOS

Fiquei muito satisfeito com os comentários a respeito de "Miles Away".
É sempre bom saber que um texto meu alcançou o objetivo, ou seja a reflexão. Venha ela em forma de descoberta(Talita), conselho (Leo), terremoto (Zilmara), perfeição(Lucas) ou sugestão (Walmir).
O comentário de Jefferson Tubarão (meu amigo há quase 30 anos) e o seu blog dulixo merecem um post à parte.
É isso aí. Enquanto os comentários desses preciosos colaboradores - e de quem mais queira participar - me mostrarem que os textos deste blog geram algum tipo de reflexão continuarei mandando brasa por aqui.
COMENTAR NÃO É PECADO!
O resto é silêncio.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

MILES AWAY

A noite corre suave. Brisa. Olor de plantas que ainda respiram (Deus as proteja!). Miles Davis toca “Autumn leaves”. Um homem conversa com o porteiro do prédio. Uma estrela nos observa “escribiendo em el cielo sus estrofas de plata”...

A música me envolve. Meio século depois, os acordes do bruxo ecoam na sala da minha casa. Tecnologia: eis o grande milagre do século XX. A unidade do tempo. A beleza eternizada. Popularizada. O som do trompete penetra nos meus poros. No mesmo segundo, Santos vira o Harlem do jazz dos anos 40 e volta a ser Santos. O passado e o presente de mãos dadas. Relatividade. “Autumn Leaves”. Miles, Cannonball, Hank, Sam e Art tocam para mim. A harmonia traz perfume ao ambiente. As plantas aplaudem. Aposso-me do som como do brilho da estrela. Nessa noite eles são meus e são exatamente essas maravilhas (que eu tenho, mas não contenho) que tornam a noite bela.

Na portaria, os homens continuam conversando. O morador fala alto com o porteiro, gesticula, mostra-lhe a revista (fonte de todas as suas convicções) e palestra sobre as mazelas do mundo. Suas frases são maniqueístas, seu entendimento é concebido de fora para dentro. Para ele um subalterno social é também subalterno intelectual. O porteiro escuta distraído. É um alvo fixo, não pode abandonar o posto. Uma presa fácil para monólogos. Sua mente não está ali (só o pretenso palestrista, mais preocupado com suas bravatas e certezas não percebe), está, talvez, procurando uma forma de se libertar, de encontrar um emprego onde suas noites sejam noites, seus domingos, domingos; ou quem sabe está do outro lado da cidade, aonde numa virada cultural um “guitarreiro batuca sua guitarra como se fosse o tambor do terreiro”.

Virada Cultural. O samba-rock. O Brasil e os E.U.A. O clube do balanço. A América que a África pariu. Pixinguinha e Robert Johnson. Little Richard e Jorge Ben. Assim como não admito Santos somente como uma porta de entrada e saída de lucros e nem tampouco o Brasil como um simples celeiro de matérias-primas, não vejo mais os E.U.A. apenas como a truculência de sua geopolítica nem como a infantilidade de seu “way of life” e de suas propagandas; é também -e sobretudo- a desobediência de Thoureau, a estrada de Kerouac, as mutações de Beck, a Lucille de B.B.King, a geração de Hemingway, o sinal de Prince, a guerra de Welles, a batalha de La Rocha e Morello, a rebeldia de Marlon e o amor de Dian.

A estrela continua nos observando inconsciente (?) de seu brilho intenso. Brilha para mim e para alguém que a observa em Illinóis. Como Miles Davis, talvez não esteja mais ali fisicamente. Seja apenas uma miragem. Uma vida além da vida. Uma luz superior à matéria. Ou um milagre tecnológico da natureza. Na sala, “Yesterdays” também brilha. Lembro-me de Billie Holiday cantando-a. Billie Holiday morta na sarjeta. Será que algum dia ela teve consciência de seu enorme valor? Cartola lavando carros na praia de Botafogo. ”El poeta es el médium de la natureleza”. Garcia Lorca assassinado com um tiro na nuca. A lei da bala. Farofa Carioca. Penso na virada cultural, nos estivadores do porto e no mundo globalizado. A liberdade e seus subterrâneos. Haverá lugar para a arte no mundo prático da não-utopia? Miles me diz que sim. Miles e seu trompete vermelho. Sua liberdade. Seus azuis. Azul de Madre Teresa e Iemanjá. De Renoir e Gershwin. Azul da geração de crianças índigo. Sim. A arte é parte do ser-humano mesmo que ele não a saiba. Enquanto houver sentimento haverá arte. Haverá vida. Vida e virada. Haverá utopia.

O morador, cheio de ódio e mídia, se despede do porteiro acenando com a revista. A noite para ele está péssima e o dia vindouro é preocupante. Sofre. O mundo não consegue apresentar-lhe mais nenhuma beleza. É ao mesmo tempo algoz e vítima.
O porteiro não se lembra mais de nada do que foi conversado. A única parte da conversa que o agradou foi sobre o jogo de seu time. Zero a zero. Irá esperar o dia nascer para voltar a viver.

É por volta da meia-noite. Miles toca “Vênus de Milo”. Toca para a deusa do amor, para a Grécia antiga e seus artistas. Toca para a estátua que perdeu seus pés e braços sem perder a beleza. Toca para a estrela. Para si mesmo. Para o universo. Despeço-me da noite e do som satisfeito por saber que em Alton ou em Santos, em Varsóvia ou em Luanda, um garoto, apesar do mundo que está montado ao seu redor, descobre na beleza da arte - como no “Clube da luta” às avessas - um modo de tornar luminosa a sua existência e mais leve a vida de quem o encontra.

Boa noite Miles Davis. “Bye bye blackbird”. Boa noite.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

ELEIÇÕES

O texto abaixo (Emoções) foi escrito há quatro anos, mas como nada mudou no comportamento dos candidatos e eleitores não vejo problemas em relança-lo. É como se eu o tivesse escrito hoje.Por isso, quem não leu (pois ele ainda não fazia parte do blog. Foi lançado no jornal Página Dois, no B&B, que na época ainda era Brasileiras e brasileiros e está no "Desconstrução", cujo lançamento já está virando uma lenda).
E lembrem-se: comentar não é pecado.
Fiquem à vontade...

EMOÇÕES

Mal o Sol nasceu e Jorge Guerreiro já pulou da cama. Aquele domingo era dia de eleições municipais e ele como candidato a Prefeito não dormira nem um minuto.

O motivo da insônia era simples: para bancar sua campanha Jorge contou com o apoio de alguns empresários, os quais prometeu facilidades e isenções durante o seu mandato.Caso perdesse ficaria endividado.E desempregado. Abrira mão da reeleição como vereador para se candidatar à prefeito portanto a possibilidade de derrota era inadmissível.Iria arruinar a sua vida, nem Presidente de Escola de Samba poderia ser mais, pois o candidato da oposição iria manter a cidade sem carnaval.

Às sete da manhã, Jota Moreira, o marketeiro da sua campanha chegou à casa do aflito candidato. Tomaram um copo de cachaça e Jota garantiu que a vitória era certa.
- A marchinha está na boca do povo, Jorjão...

- É, mas o samba mais cantado quase nuca é o campeão do carnaval... - refletiu o experiente carnavalesco.

- Só que no carnaval o júri é técnico e nas eleições o voto é popular. Alguma dúvida que se o campeão do carnaval fosse escolhido pelo povo o vencedor seria quem tivesse o samba mais cantado. Eleição é isso: o carnaval do voto. - tranqüilizou o homem do marketing já acostumado a iludir os clientes e seus público alvo.

- Viva a Democracia brasileira!- se animou o candidato. - Mas e o enredo Jota? Achei repetitivo...

Jorge se referia ao tema da campanha: a segurança pública. O slogan era “Jorge, o guerreiro da paz” e dizia que saúde e educação eram supérfluas, pois iam por água abaixo com um tiro na cabeça. O importante para o povo era ter segurança para poder trabalhar e comprar o que quisesse...

- Eleição é repetição. O povo gosta. - concluiu o elaborador do plano de campanha. - Foi tudo impecável. O enredo, o samba, a fantasia – a fantasia eram cavanhaques postiços que eram distribuídos para o povo usar nos showmícios numa referência ao do candidato.

- Uma perfeição foi o nosso desfile – o candidato já estava com lágrimas nos olhos- os carros todos alinhados, as bandeiras, os destaques, o povo todo usando nossas camisas e o gran finalle. Que show! Se bem que eu acho que aquela dupla caipira saiu caro...

- Não é mais caipira. Agora eles formam uma dupla romântica. E você vai ver que foi barato.Quantos votos você acha que tirou da concorrência quando eles pediram emocionados pro povo pensar nos filhos, na segurança das crianças...

- É verdade. Mas além do cachê eu tive que me comprometer que toda quermesse que a Prefeitura fizer, no meu mandato, vai contratar o show deles.Já pensou que merda...

- O povo gosta...

Tomaram mais um copo de cachaça e foram votar.Na porta junto com o povo a bateria da escola de samba tocava a música da campanha acompanhada pelo coro popular:

“Jorjão sangue novo,
É o guerreiro do povo
É gente que faz.
Na minha rua todos são Jorge, são Jorge,
No meu trabalho todos são Jorge, são Jorge...

Esta última parte elaborada por Jota trazia para a campanha o apoio peso pesado de São Jorge, padroeiro da cidade, para a campanha do candidato.Aliança que Jorjão fez questão de firmar no citado showmício prometendo ao povo a “Semana São Jorge”.

- Essa atitude além de justiça com esse santo guerreiro, como nosso povo, que tanto fez por esse nosso Brasil tão sofrido, vai gerar empregos, diretos e indiretos, além de trazer turismo para a nossa região. E isso não é promessa não, vocês me conhecem e podem me cobrar, todo dia 23 de abril, será feriado municipal – concluiu emocionado o Guerreiro candidato.

- Viva São Jorge! Viva Jorge Guerreiro – gritou Jota levantando as mãos do candidato.

Na platéia lágrimas, esperanças, aplausos e cavanhaques postiços enquanto os cabos eleitorais distribuíam freneticamente os panfletos do candidato motivados pela certeza que seriam os primeiros a estarem empregados com a criação da semana milagrosa.

Na porta da casa de Jorjão alguns pedidos de emprego eram ouvidos com atenção pelo candidato que respondia prontamente:

- A questão do desemprego, que tanto abala a juventude de nossa cidade, será totalmente superada no meu governo. E daqui a quatro anos no final do meu mandato ninguém nesta cidade vai mais saber o que é ficar desempregado. Podem apostar...

- Viva Jorge Guerreiro! – gritou um cabo eleitoral enquanto a bateria da escola de samba voltava a tocar a música da campanha.

- Você é um gênio, Jota. – disse Jorge à seu assessor já sentado no banco do carro rumo a escola – Essa música da campanha com a repetição resultando em São Jorge, isso é demais.Você devia ser músico!

- Eu sou publicitário, Jorge. Hoje em dia músico de sucesso e publicitário é praticamente a mesma coisa.Quantas músicas de sucesso que tocam o dia inteiro nas rádios não foram feitas pelos marketeiros das gravadoras? Até mesmo a imagem desses ídolos que aparecem por aí. Eleger um candidato ou criar um músico de sucesso pra mim é a mesma coisa.

Agora se eu fosse músico mesmo, desses que querem um som sofisticado, acham que música é coisa séria, provavelmente taria igual à eles tocando em barzinho pra meia dúzia de intelectuais... – riram os dois da situação da música no país.

Na escola onde votou Jorge foi recebido com aplauso, deu entrevistas, votou e foi visitar outras zonas eleitorais, onde deu mais entrevistas, prometeu acabar com a violência e abraçou algumas senhoras emocionadas. Depois voltou para o seu bairro onde tomou mais cachaça, sambou, prometeu empregos e recebeu o resultado da boca de urna: empate técnico.

Às seis da tarde, horário de início da apuração dos votos, Jorge, que estava trancado no banheiro havia dez minutos, recebeu o chamado do filho Guerreirinho, futuro candidato a vereador:

- Pai, a bateria já está tocando, o povo ta todo lá embaixo gritando o seu nome, vamos descer, chega disso por hoje...

- Já to saindo. Fala que eu estou no telefone recebendo o apoio carinhoso de quem não pode vir...
Saiu do banheiro, acendeu uma vele verde, de “confirma”, para São Jorge e foi assistir à apuração.

No ginásio onde a apuração foi realizada cavanhaques postiços, gritos de “já ganhou”, abraços e alguns pedidos de autógrafo esperavam o candidato que acompanhou a abertura de urna por urna cheio de sobressaltos e idas ao banheiro, entre um copo e outro de whisky.
Mas dessa vez o povo fez justiça e o samba mais cantado ganhou a eleição. O novo prefeito ouvia, com lágrimas nos olhos, a queima de fogos, preparada pelo autor do samba, a bateria da escola e os gritos da multidão que o carregava nos ombros, “é campeão”.

E cheio de emoção e cachaça já pensava no carnaval das próximas eleições.

sábado, 27 de setembro de 2008

LEVE

Escrever por quê?

Pra que?

Pra quem?

Escrever é gestar,

parir,

criar,

É lançar mundos no mundo,

Libertar-se em si.

Estou preso a mim

Como a palavra está presa às letras,

Como o jogo está preso às regras,

Como a língua está presa à gramática.

Comigo sou amor, sou Glauber,

Sou Picasso, Sidarta;

Sem eu sou apenas o concreto,

O português tacanha,

O tempo e o espaço,

As limitações externas;

Preso ao indivíduo, à razão,

Como o yang está preso ao yin,

Como o fim está preso ao início,

Como Deus está preso à fé,

Mas, cada palavra que passa me liberta

E livre sou mais real, mais ar, mais vida,

Mais Cauê e Renata,

Sou mais eu.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A VIAGEM

Todo es mentira en este mundo
Todo es mentira la verdad
Todo es mentira yo me digo
Todo es mentira ¿Por qué será?
(Manu Chao/Mentira)

Eu quero morar na cidade da propaganda.

Não é a cidade retratada pelos telejornais nem a polis de Platão nem a dos sonhos de Lynch e muito menos a de cabeça pra baixo que seduziu Raul Seixas. Esse oásis de justiça social e homens públicos esforçados em servir a população que o elegeu já existe. Moramos nela e nunca nos demos conta do nosso privilégio.

Eu quero me mudar para a cidade que a propaganda diz que é a minha. A bela cidade que dizem ser a que eu moro mesmo eu não a conhecendo.

A cidade do serviço público de qualidade com seus hospitais equipados e eficazes, seus transportes eficientes, sua política justa, suas escolas paradisíacas. A cidade dos jovens informados, da massa politizada e dos Impostos cobrados com responsabilidade e usados com transparência.

Todos nós que julgamos ser essas cidades um universo paralelo, que nunca pisamos em seus solos sagrados nem nunca desfrutamos de suas benesses, é que estamos enganados. Elas existem sim. O que vemos e vivemos todos os dias, os sofrimentos e revoltas, as injustiças e indiferenças, não passam de miragem. Ilusão de nossa imaginação pessimista. Real é o que nos diz a propaganda. Prova disso é a satisfação popular que se faz presente nas urnas em todas as eleições cujos resultados contrastam gritantemente com as lamúrias e bravatas que ouvimos durante a administração de tais benfeitores.

Já não sei mais se quem vota é o eleitor ou a pesquisa, se o real é o que eu vivencio ou a que me mostram os meios de comunicação.

Só sei é que eu não vivo e nem nunca vivi nas cidades existentes nas propagandas dos candidatos a reeleição.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

CASA

Na rua há um chalé. Um único entre os espigões. Um lar em meio ao progresso.

Anacrônico? Talvez. Numa era em que basta estar fora dos moldes ditos modernos para ser considerado como tal, é bem certo que o distinto chalé seja, para os “moderninhos” moradores dos “Residencials”, um trambolho, um resquício de uma época enterrada.

E assim é. O modesto chalé está lá, carregando consigo não só uma época que passou, mas todas as que passam por ele. Embora não seja tão antigo quanto parece ser na cabeça dos filhos do progresso, não há ninguém da sua idade na tal rua. Mais velho então, nem pensar. Na sua altivez estão lembranças de seus irmãos que deixaram de existir para que outros interesses viessem à luz. E ele segue firme. Sua fachada está pintada, as janelas e o portão também. Os muros baixos, os únicos na rua das grades, alarmes e interfones, estão bem cuidados. O chalé se preserva. Mesmo ouvindo os rumores de que ali deveria estar algum outro pseudo gran fino de nome estrangeiro, ele permanece firme. Firme e asseado. Dentro dele correm vidas. Vidas que se protegeram no seu calor, vidas concebidas no seu aconchego. Vidas que se infiltraram em suas paredes e cujas marcas permanecem embaixo das pinturas.

Encostada no muro, a velha (Sim, eu disse velha, mas ela não liga para tal, sabe que é preferível ser chamada assim com carinho a ser desrespeitada entre risinhos e palavras escolhidas), a rainha do chalé olha mais uma tarde passando pela rua. Uma tarde de maio, mês das noivas e das mães. Nem Helena nem Macabea nem Carolina, ela olha a cidade indiferente ao tempo. Varre o lixo do elegante prédio atirado no seu quintal e cultiva suas lembranças. As lembranças da vida que passou e que continua a passar. Dos filhos que são pais, dos netos que batalham e dos bisnetos que virão. A vida continua seguindo independente do século e das ambições predominantes.

Seus olhos verdes, sua pele levemente maquiada, seu perfume doce e discreto, seu sorriso aos passantes, mostram que a vida ainda pulsa indiferente às tendências. Já viu muito, já ouviu de tudo. Viveu o suficiente para não ter certezas. Sua única convicção é a beleza incerta desta tarde. Desse mesmo muro viu guerras e revoluções. Marchas e marchas. Democracias e ditaduras. E nada abalou seu pensamento, sua fé e felicidade. Ela continua olhando pelo muro como se assistisse ao mundo, como se ele fosse um espetáculo apartado do seu chalé. Como se a vida das pessoas individualmente não formassem o mundo e como se o mundo em nada influenciasse a sua vida, seja na alegria seja na tristeza. Sorri para os bebês que passam nos carrinhos. São seus filhos, seus netos. Os bebês riem das mesmas brincadeiras e choram pelas mesmas necessidades indiferentes ao século. Nos tempos de Lacan já eram assim; já o eram antes mesmo da loba.

“La bohème” toca na sua vitrola e ressoa por toda a rua. "Je vous parle d'un temps que les moins de vingt ans ne peuvent pas connaitre..." ("Eu vos falo de um tempo que os menores de vinte anos não podem conhecer...") E ela cantarola com os olhos no entardecer da rua e em Montmartre ou no Alentejo ou na Galícia ou nas ruas de uma Santos que não existe mais. "La bohème, la bohème, ça voulait dire on est heureux ..." ("A boemia, a boemia, isso queria dizer que éramos felizes..."). Canta a vida, a felicidade, o amor e o tempo que fica mas não pára. O tempo queijo derretido da memória persistente de Dalí. "...Fallait-il que l'on s'aime et qu'on aime la vie..." ("...Era preciso que nos amássemos e amássemos a vida...")

Haverá um dia em que o chalé não estará mais ali. Cairá como as árvores da floresta em nome do dito progresso. Talvez até o endereço deixe de existir. "...Ni les murs, ni les rues qui out vu ma jeunesse... "("...Nem os muros nem as ruas que viram minha juventude..."). Quando esse dia chegar, a tal velhinha não mais fará parte deste mundo de famílias e presépios. Haverá um dia em que todo o zelo se transformará em destroços, a afeição em herança e o amor em lembrança, dando lugar a um outro amor que também se transformará em lembrança e assim sucessivamente. Assim sempre passará o mundo. Os homens vivendo suas vidas, construindo suas casas, dando vida às ruas e passando para outras vidas, outros sonhos. E toda essa pintura será sempre contornada pelo lápis do amor. O amor. Enquanto houver vida na Terra haverá amor. O amor da velha e do chalé. O amor das leoas e dos gorilas. O amor dos homens que marchavam. O amor da ópera e dos operários. O amor dos índios e dos antropólogos. O amor das noivas e das mães. A vida será sempre amor e procura.

Sigo pela rua, a velha e o chalé ficam para trás. Na vitrola toca “Eu e a brisa”. Eu já não a vejo, provavelmente alguma placa de “vende-se” anuncie o tal inventário. “...brisa fica pois talvez quem sabe...”; pode ser que se eu olhe agora já não distinga mais a velha do chalé, pode ser que o muro já tenha caído. “... o inesperado traga uma surpresa...”. Eu sou a velha e as suas incertezas. O tempo que eu a vi vendo só existe dentro de mim. Seus filhos e netos foram fecundados por mim. Ela é o outro e eu o bebê. A tarde como a vi só existe pra mim. Eu e a brisa. Eu agora sou o chalé. O chalé e o endereço que um dia deixará de existir.

terça-feira, 29 de abril de 2008

SANTO OFÍCIO

Ah, a propaganda!
Santificado é o seu nome.
Da mesma forma que a filosofia guiou as idéias e pensamentos do século XVIII, nesta nossa Idade Mídia, em que a sofrida Mãe Terra se transformou numa imensa bolsa de valores, é a propaganda quem determina o pensamento contemporâneo.
Sob a sua influência, quantos crimes compensaram? Quantos satélites foram invadidos? Quantos muros se ergueram e quantos caíram? Quantos imbecis se tornaram gênios e quantos gênios foram malditos? Quantos reis e rainhas foram coroados e quantos fenômenos foram criados? Quantas línguas morreram e quantos deuses deixaram de existir?
É ela a serpente que induziu o homem a provar o seu fruto proibido e viver condenado a ganhar o pão com o suor do seu rosto. Como se não bastasse comer o cérebro dos mortais, ela toma o lugar dos sentidos, regendo a seu bel prazer o olfato, a audição, a visão e até mesmo o tato dos incautos, vítimas preferenciais da sua lobotomia.
Santa propaganda! São os seus milagres que transformam entretenimento em arte, repressão em liberdade, pão em brioche, negociata em justiça, lixo em luxo e ambição em religião. São as suas obras que anestesiam a mente do homem condenado a permanente atividade e desvario. São os seus interesses que estipulam a estética, a fé, a saúde, o lazer, os ideais e as ambições do censo comum. É por sua mão que o belo passa a ser feio e o inconcebível, real.
Tantas vidas mal vividas, tantas famílias desfeitas, tantos talentos desperdiçados, tanta fome, tanto tédio e tanto vício, para que sempre seja feita a sua vontade.
Cervantes definiu a pena como a língua da alma. Basta lermos nas entrelinhas (nem sempre é preciso tanto) para constatarmos que a escrita dos nossos escritores, jornalistas, cronistas e de tantos outros é a língua da alma do negócio.
E em nome dessa beatitude é que no país movido pelas agências de criação, ferir a liberdade de expressão é proibir publicidade de cerveja na televisão.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

DIA MUNDIAL DO LIVRO

Dia 23 de abril é o dia mundial do livro.
Um país se faz com homens e livros, disse Monteiro Lobato; mas talvez falar de livros em um país que tem mais editoras que livrarias talvez não signifique exatamente a construção de um país. Mesmo com todos os festejos e ações que a UNESCO promove em países do mundo inteiro para celebrar a data que ela instituiu em 1995, o mais importante é lembrarmos o que ela significa:
No dia 23 de abril do longínquo (nem tão longe assim) ano de 1616, dois gênios das letras deixavam o nosso planeta:
Shakespeare e Cervantes. Hamlet e D.Quixote de La Mancha. Romeu e Julieta e O curioso impertinente.
Gênios tais que se confundem com as lendas;
Gênios tais que sobrevivem 400 anos depois de suas mortes;
Gênios tais que seus personagens adquiriram vidas próprias e romperam a barreira do tempo. A prova disto é que hoje, séculos depois das mortes de seus criadores, não é difícil encontrar pessoas que se identifiquem com a inadequação de D.Quixote com o tempo em que vivia ou com a rebeldia contra as normas sociais representadas pelo casal de personagens mais famoso do teatro.
Cervantes lutou em guerras, foi prisioneiro na Argélia, perdeu a mão esquerda e criou o melhor livro de ficção de todos os tempos, antecipando-se ao realismo. Shakespeare levou uma vida discreta, o que colabora com as lendas quanto a sua existência, pariu o teatro moderno e, séculos depois, emprestou seus personagens e conflitos para servirem como base para os estudos de Freud e Lacan.
Hoje, na era digital do excesso de informação e variedade de conceitos, é sempre oportuno refletirmos onde estão nossos pares para Shakespeares e Cervantes.
Estarão tentando romper a barreira dos intere$$es editorais e midiáticos? Combatendo em alguma guerra absurda? Interessados apenas nas suas, como disse Capinan, vida in vitro feita nas coxas e vivida às pressas? Preparam no subterrâneo da nossa Idade Mídia uma obra-prima? Ou esqueceram-se de serem o que são e tentam ser Shakespeare e Cervantes?
De qualquer forma, nada mais justo para o dia do livro que a data em que perdemos duas das maiores forças literárias que a raça humana produziu.
Parabéns Miguel! Parabéns Willian! Parabéns a todos, gênios ou não, que rompem a barreira do cotidiano e se aventuram pela dor e delícia do mundo das letras!

*Publicado também no jornal Página Dois (http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=4883)

terça-feira, 22 de abril de 2008

SINAIS

Sinal vermelho. Pare. Sinal verde. Contramão. Velocidade máxima permitida. Travessia de pedestres.

Para que servem as sinalizações? Por que existem leis de trânsito? É óbvia a resposta que as leis, no caso do trânsito, servem para assegurar uma convivência harmoniosa. Mas, no caso do que vemos pelas ruas do Brasil a afirmativa pode bem ser interpretada como falsa. Se na teoria todos aparentemente concordam com a afirmativa, na prática quase ninguém as respeita. Resultado: o caos.

Talvez o nosso trânsito seja a demonstração cabal da selva em que ainda vivemos, dos selvagens em que nos transformamos e da fraqueza da nossa civilidade. No país do “quem pode mais chora menos” e “cada um com os seus problemas”, o descalabro instalado em nossas avenidas, ruas e rodovias é a metáfora perfeita do individualismo reinante. Aí está a conseqüência do tão aclamado jeitinho: salve-se quem puder.

Como esperar de uma população que não consegue respeitar um código tão elementar para a convivência pacífica como o de trânsito a construção de uma grande nação? Como falar em cidadania, democracia ou o que quer que seja para quem não consegue respeitar uma faixa de pedestres? O número de acidentes com mortos, cuja causa é o desrespeito às mais elementares leis de trânsito, dá para preencher a nossa televisão com programas diários, desses que gostam de espremer o sangue das vítimas da nossa selvageria ou até mesmo alguma produção com o intuito de conscientizar e sociabilizar, coisa raríssima de encontrar nas nossas emissoras ( mais preocupadas com os próprios interesses que com as obrigações perante o país que lhes deu a concessão), sem necessidade de reprise.

Quem é o culpado? O governo? O sistema de educação? A má distribuição de renda? Não. A culpa é do individualismo que rege a vida nacional. A culpa é da falta de sensibilidade pelos interesses do próximo, dessa lei da selva onde somente os fortes sobrevivem (no trânsito, a preferência nunca é do pedestre) e cada um visa apenas os seus próprios anseios. Aonde as nossas classes “A” e “B” enfiam toda a sua elegância, esclarecimento e sensibilidade quando a bordo de seus automóveis (muitos deles importados) cometem atrocidades dignas de deixar boquiaberto o exército de Átila?

É esse individualismo burro, que muitos gostam de intitular malandragem, a causa do nosso caos. É através dele que elegemos nossos governantes, que educamos nossos filhos, que parimos a guerra urbana que se instituiu em nossas metrópoles. E regidos pelos mesmos individualismos é que tentamos encontrar as soluções. Pra que buscar soluções? Pra que mostrar solidariedade com as crianças assassinadas quando desprezamos os vivos? Pra que tentar buscar soluções para a paz quando a nossa única preocupação é com a nossa própria segurança? Pra que discutir quando começa a vida se a partir do nascimento somos todos moldados segundo a doutrina do “cada um por si”? Pra que discutir política quando o nosso único interesse é pela nossa própria estabilidade em detrimento de qualquer tentativa de se construir uma nação de verdade? Será que as regras de respeito e convívio são tão desbaratadas para nós como eram as leis da cavalaria para os contemporâneos de Cervantes?

Não foi pensando nos pequenos interesses individuais, nem na mesquinharia dos oligarcas que os E.U.A. (que gostamos tanto de nos comparar) se tornou independente e firmou-se como nação. Mesmo com o egoísmo aguçado pelo capitalismo, o sentimento de coletividade, de patriotismo é o que impulsiona o País. Se Fidel deixa o governo de Cuba com a certeza de que sua Universidade-Ilha jamais voltará a ser um balneário é porque sabe que os ideais da revolução deixaram para a população a certeza de que o coletivo é mais forte que o individual.


Enquanto em nossas vias continuarem circulando a barbárie do nosso personalismo, nenhum partido, religião ou sistema nos livrará da realidade fabricada pelo nosso egoísmo e aqui será sempre, como bem disse Torquato Neto, o fim do mundo. O país dos heróis sem caráter de Mario de Andrade, do “sabe com quem está falando?” de Roberto da Matta, da corrupção, das brigas de torcida, da bala perdida, da dengue, do seqüestro relâmpago, do coronelismo, do legal-imoral, da “pilantropia”,dos engarrafamentos e de toda a sorte de catástrofes que o desrespeito ao próximo pode causar.

quarta-feira, 5 de março de 2008

DIAS DE LUZ

Neste ano de 2008 comemoraremos os cinqüenta anos de lançamento do Lp “Canção do amor demais” da divina Elizeth Cardoso, o primeiro Lp a registrar a batida do violão de João Gilberto e, portanto, o marco zero da bossa nova. Sendo assim, este é o ano de comemorarmos meio século da bossa sempre nova. Parabéns Brasil!

A bossa nova foi um sonho que o Brasil teve. Um sonho de sofisticação e simplicidade. Um sonho de popularização do refinamento em meio a um país que caminhava de encontro à realização dos ideais de uma geração sonhadora. Seu cenário era o Rio de Janeiro com peixinhos a nadar no mar e garotas com um balançar que era mais que um poema. O Rio de Orfeu, Garrincha e Niemeyer; sua pátria era o Brasil de Juscelino (o presidente bossa nova), da poesia de Drummond, das crônicas de Rubem Braga, da Gabriela de Jorge Amado e das telas de Portinari.

A bossa, com seu estilo muito natural, colocou o Brasil definitivamente entre os maiores produtores (quiçá o maior) de música popular de qualidade do planeta. Tinha na sua árvore genealógica um músico de talento ímpar chamado Tom Jobim, um poeta romântico de primeira grandeza chamado Vinícius de Moraes e um gênio chamado João Gilberto. Suas batidas, suas harmonias, suas letras coloquiais de amor e galhofa e sua miscigenação do samba da nossa terra com o jazz era a trilha sonora ideal para um país que se erguia como potência cultural e que acabava de gritar “o petróleo é nosso”.

Seus cantinhos e violões revelaram ao mundo, talentos inigualáveis como João Donato, Nara Leão, Eumir Deodato, Carlos Lyra, Astrud Gilberto e Johnny Alf, emocionaram o Carneggie Hall, fascinaram músicos como Miles Davis, Stan Getz , Frank Sinatra e Ella Fitzgerald e arrebataram inúmeros Grammys (Awards, não o genérico latino). Depois caiu na mão de charlatães sem talento que se aproveitando da popularidade que o gênero alcançava tentaram transforma-la em apenas mais um produto, como disse João Gilberto, em “jazz para débil mental.”.

Mas, como tristeza não tem fim, felicidade sim, o Brasil foi subjugado pelo medo e pela ganância e quem acreditou no amor, no sorriso e na flor depois chorou e perdeu a paz. João Goulart foi deposto, as reformas não aconteceram e JK não voltou em 65. A roda-viva de uma guerra estúpida e fria chegava ao Brasil tornando cinzas nossas tardes tão azuis. Os filhos da bossa nova surgiam então com uma preocupação maior que o refinamento musical: a de conscientizar uma população que começava a mergulhar na letargia de uma ditadura truculenta e alienante. Precisavam fazer a hora, caminhar contra o vento, lutar para que não perdêssemos a ternura.

Hoje, meio século depois que a onda da bossa nova se ergueu no nosso mar, só resta uma certeza, é preciso acabar com essa tristeza. É preciso inventar de novo o amor.

* Publicado também nos jornais "Brasileiros e Brasileiras", "Página Dois" e no site "Direto da Redação".

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

O CANDIDATO ROCK N' ROLL

Uma nova esperança paira no ar, cada vez mais quente, do nosso mundo: seu nome é Barack Obama.

Depois dos violentos, e pouco inteligentes, anos Bush, grande parte da população estadunidense vê no negro havaiano uma luz no fim do túnel de trevas desse mundo cada vez mais corporativista. E como a paz e a liberdade do mundo, principalmente dos países ditos em desenvolvimento, estão sujeitas às decisões tomadas pela Casa Branca o assunto passa a ser de interesse mundial. Inclusive, chega a ser razoável pensar que eleitores do mundo inteiro deveriam votar nessas eleições.

Barack Obama é o candidato rock n’ roll. Assim como a música de Little Richard e Chuck Berry representava a ânsia de liberação e expressão da geração do Pós-Guerra (se bem que a guerra não acabou, apenas esfriou. E se observamos os acontecimentos geopolíticos não será absurdo concluir que ela continua até hoje), dos negros do sul dos E.U.A., o senador democrata representa o sonho das minorias (?) esmagadas por uma política voltada aos intere$$es excludentes do poder multinacional.

Ao som de U2 (os trovadores da luta religiosa da Irlanda), promete um “Beautiful day” após a longa noite “bushiana”. É o porta-voz de uma juventude emudecida pelo esvaziamento ideológico. Promete o fim das guerras burras e uma universalização no sistema de saúde cuja precariedade Michael Moore retratou no seu mais recente filme, “Sicko”. Quer um Estados Unidos realmente unido e propõe uma mudança nas relações internacionais e ambientais.

No mundo hipocritamente correto, onde a preocupação individualista é quase uma lei no pensamento corrente, Obama é um sinal de mudança. Uma mudança bem parecida com a transformação nas relações ambicionada pelos pais do rock n’roll e sonhada por Luther King.

Com a indústria cultural preocupada em fabricar uma música fácil, cada vez mais parecida com jingles, e pseudo-artistas cuja única preocupação é engordar suas contas bancárias colhendo os frutos de uma fama conquistada com 99% de promoção e 1% (quando muito) de inspiração, sem Jimmy Hendrix e sem John Lennon, o outrora anárquico rock n’roll é hoje uma monarquia mais a serviço dos interesses corporativistas alienantes do que das massas oprimidas que o originaram.

Se Obama também mudará a postura ao chegar ao topo, no caso, à Casa Branca, não se sabe. Não sabemos ao menos se conseguirá eleger-se candidato. Porém, o democrata miscigenado, cujos jantares de família "são sempre uma mini-O.N.U.", é uma via alternativa ao marasmo ideológico e traz de volta o sonho de um mundo mais tolerante e diverso.

Infeliz é o povo que precisa de heróis, dizia Brecht. Portanto, Obama reflete a infelicidade daqueles que são cada vez mais esmagados pela truculenta política corporativista, assim como o rock foi durante anos a música eleita por aqueles que sonhavam mudar o mundo.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

CAMINHOS

Todos os dias havia debate na senzala.

Reunidos na mesa do jantar - ruim e insuficiente, como diria Graciliano Ramos – os escravos discutiam suas vidas, seus planos, suas funções e, principalmente, o futuro.

Toninho era sempre o mais apaixonado em suas teses. Sempre eloqüente e esperançoso, seus olhos brilhavam quando defendia seus princípios. Ele realmente acreditava no que sonhava. Mas, para a maioria dos seus companheiros de senzala, não passava de um maluco, de um baderneiro com sérios problemas de caráter. Ele queria a liberdade.

- Será que você não percebe que isso é uma loucura, rapaz? – dizia-lhe Neto, um senhor de respeito, antigo na labuta e respeitado por todos – Esse papo de liberdade é muito bonito na teoria, mas na prática não funciona. Se fosse realmente possível, Palmares não teria sido destruída...

- Palmares caiu por uma série de fatores e nenhum deles aponta para a inviabilidade da liberdade...

- Não? Você precisa informar-se mais. Sonhar é muito bonito, eu concordo, mas o trabalho é que dignifica o homem. Nós precisamos de alguém que nos direcione, o problema de Palmares foi exatamente esse, não haviam pessoas esclarecidas para governar...

- Esclarecidos para o senhor são esses vagabundos que escravizam a gente?

- Olha o respeito, rapaz. Como é que você pode chamar nossos senhores de vagabundos? Chega a ser até ingrato da sua parte...

- Ingrato? E por que eu deveria ser grato a quem vive do luxo proporcionado pelo meu suor e em troca me devolve esta vida de merda?

- Você devia era levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus: você tem comida na mesa, tem saúde e tem um teto. Você já parou pra pensar em quantas pessoas gostariam de estar no seu lugar? Ter a oportunidade que você tem?

- Oportunidade?!?!? De que? De enriquecer ainda mais quem sempre foi rico? De esperar os minutos de folga para fazer o que eu realmente gosto? Oportunidade de estragar a minha saúde enriquecendo essas sanguessugas?

Enquanto Neto e Toninho, ou Antonio de Ogum, discutiam, os demais escravos acompanhavam com atenção e pensavam em suas vidas. No fundo, lá no escaninho da alma, todos concordavam com Toninho. Porém, os argumentos de Neto pareciam-lhes mais sensatos, sobretudo porque enquanto um era um jovem sonhador o outro era um senhor experiente. Além do mais, já estava provado que a liberdade era para quem tinha capacidade de gestão, o que não era o caso deles.

Toninho, na verdade, pouco se importava com a desaprovação dos outros, sabia que os recursos que dispunham para livrar-se da lavagem cerebral que receberam eram escassos e enquanto a subserviência de Neto fosse tomada como exemplo, as coisas permaneceriam como estavam.

- Escute o que eu vou te dizer, garoto. Eu tenho idade quase de ser seu avô, aliás fui muito amigo dele, e me sinto na obrigação de te aconselhar: esse papo de igualdade não existe. É desculpa de vagabundo que não quer pegar no batente. E te digo mais: agradeço todos os dias da minha vida por trabalhar para um senhor que raramente nos chicoteia, e quando o faz é porque o merecemos, e tudo o que eu tenho hoje na minha vida eu devo a ele.

- E o que o senhor tem na vida? – Toninho não conseguia esconder o desprezo que sentia pelo comodismo e ignorância do respeitado conselheiro.

- Tenho respeito, uma estória linda e, dentro em breve, terei direito a um merecido descanso. Aposentar-me-ei como chefe. E sabe por quê? Porque eu lutei pra isso. Porque ao invés de sonhar eu construí minha vida.

- E foi isso que o senhor sempre quis? Quando olhava para sua velhice, era essa bela estória que sonhava construir? Não acredito.

- As besteiras da mocidade morrem com a mocidade.

- Será que a sua vida é tão desprezível que valeu a pena trocá-la por essas porcarias que o senhor julga imprescindível?

- Chega! Já falou besteira demais. – Branco e Gegê interferiram no debate enquanto Neto, com um sinal de desdém, desaprovava o comportamento de Toninho.

- A vida vai ensiná-lo. – profetizava o respeitável trabalhador.

A cada dia a situação dos escravos tornava-se mais sacrificantes. Apoiados pelos governantes, os senhores cada vez davam menos direitos aos pobres trabalhadores, além de exigirem cada vez mais dedicação. As obrigações aumentavam na mesma proporção que os direitos eram suprimidos.

Cada direito suprimido dava origem a um novo debate e paradoxalmente quanto mais eram explorados mais os trabalhadores tomavam partido do senhor.

Incomodado com as conversas abordadas por Toninho durante as refeições, Neto sugeriu aos administradores uma forma de acabar com os debates. Um mês depois, uma televisão foi instalada na senzala. O aparelho foi recebido com festa, Neto fez um discurso exaltando a benevolência dos diretores em proporcionar diversão e cultura aos trabalhadores.
Desse dia em diante, os debates foram substituídos pelos programas de auditório, novela e telejornais cujos conteúdos deixavam bem claro que qualquer sugestão de uma vida diferente daquela era um disparate.

Somente Toninho não via mais sentido em permanecer naquela situação. Desde criança nunca vira perspectiva de felicidade dentro do regime que viviam. Nunca sonhou o sonho que lhe implantavam e nem se deixou levar por congratulações e promoções. Isolado, desistiu do levante, da tomada da empresa por todos os escravos, de uma república igualitária, que tinha em mente e decidiu sair dali sozinho.

- A gente ainda não sonhou. A vida não é só isso. Nós estamos entregando nossas vidas aos interesses alheios. Eles dependem de tudo isso, nós não... Os escravos são eles e nós sustentamos com os nossos desejos a liberdade deles. Pra mim chega! Como disse meu mestre Rousseau, é preciso ter olhos pra ver e coração pra sentir. – falou o rapaz a alguns amigos poucos minutos antes de demitir-se – O que faz o forte é o medo do fraco. Eu quero ser feliz e para isso é necessário que eu seja livre. A liberdade precede a felicidade, até isso eles subverteram. E nem isso, vocês percebem. – falou o rapaz aos companheiros de cruz na última noite que passou na senzala.

Depois dessa noite Toninho nunca mais foi visto. Neto foi promovido e tratou de redobrar a vigilância e impedir que o nome de Toninho fosse proferido pelos amigos. Patrocinado pela direção, organizou palestras de motivação e exibiu documentários que mostravam o contraste da verdadeira liberdade que eles tinham naquela senzala em comparação a repressão e a miséria dos quilombos.

A liberdade até hoje não chegou àquela senzala, se bem que todos acreditam viver no modelo mais liberal do planeta. Muitos dos que ouviram o debate ainda repetem confiantes as palavras do velho Neto outros se arrependem de não terem saído com Toninho, de temerem não haver felicidade fora da escravidão e do sonho de se tornar senhor.

Neto morreu alguns anos depois de uma doença causada pelo trabalho. No enterro, muitos amigos comentaram a sabedoria e a vida correta do respeitável chefe. Os patrões não foram despedir-se, no entanto mandaram uma linda coroa de flores com um emocionante cartão que realçava a importância da obstinação e da perseverança daquela personalidade única.

Quanto a Toninho, as notícias que chegaram dele na senzala nunca foram comprovadas. Ninguém sabe ao certo como foi sua vida fora da senzala. A informação oficial, transmitida pelos meios de comunicação e palestrantes é de que ele morreu de fome nas imediações da senzala.

Alguns afirmam que ele foi morto traiçoeiramente pelas tropas dos empresários (perdão, do governo) enquanto pregava a liberdade (e a igualdade) em outras senzalas.

A única certeza que se tem é a de que ele nunca mais foi escravo.

O resto é silêncio.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A ENGRENAGEM

Augusto Boal foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz!

Não falaremos aqui sobre o quão curioso será teatrólogo vir a ser o único vencedor do tão cultuado prêmio em um país onde o teatro tem sua penetração restrita e nem sobre a grande contradição do Nobel da paz ser pago com o dinheiro da venda de dinamites, já que Alfred Nobel foi também o inventor do explosivo.

Acima de tudo isso está a obra de Boal e tudo o que ela engloba: o teatro do oprimido, o teatro legislativo (uma miscigenação de teatro com política bem ao estilo da cultura brasileira), a Libertação de D.Helder Câmara, a luta de Zumbi e do povo de Palmares, os ideais de Tiradentes e Bolívar, a pedagogia de Paulo Freire, a antropofagia modernista, o teatro instrutivo de Brecht e a paz. A paz...

Com a história contada pelos vencedores, a cultura da guerra e das revoluções é, para muitos, a mola que a impulsiona. É a guerra que propaga a opressão. É ela que mantém o governo, a educação e as informações sob controle. E como nos ensinou Cristo, o homem que disse nos trazer a espada: não devemos combater o mal com o mal. Ou seja, a paz só pode ser fruto da paz. Portanto, o teatro do oprimido do nosso curinga carioca é um grande passo rumo a uma sociedade pacífica e verdadeiramente cristã (no bom sentido da palavra).

Ou será que alguém é capaz de vislumbrar alguma possibilidade de paz entre a raça humana com a nossa sociedade dividida em opressor, opressor-oprimido, oprimido-opressor e oprimido? Será que alguém ainda é capaz de crer na paz pela força? Na liberdade vigiada? Nas invasões pela liberdade? Será que alguma esperança ainda pode ser alimentada com o avanço da política excludente das corporações?

A criação de Boal, sua visão de fazer um teatro fora da lógica separatista artista X público, de dar voz àqueles cujos papéis sempre foram assistir e aplaudir ganhou o mundo e hoje é praticado em mais de 70 países. Mais que um prêmio Nobel ao Brasil, um prato cheio para propagandas ufanistas, a sua importância está na proposta: a idéia de uma sociedade sem opressão (moral, física, financeira, intelectual, criativa, religiosa e todas as outras) onde todos são melhores do que se imaginam. Um mundo onde todos têm voz. Não a voz pedinte, a voz de que os ouvidos “superiores” se servem para exercer suas filantropias e exibir sua benevolência. E sim a voz criativa, a voz realizadora, aquela que grita que somos todos capazes e que nossa sociedade não é feita de minorias, líderes e elites, a voz que grita que nossa sociedade é feita de plenos-cidadãos. A voz de um mundo onde todos podem “sentir-se gente com a alma à solta”. Sem opressores nem oprimidos. Um mundo livre.

Com o Nobel ou não, fica a mensagem do filho do padeiro de que enquanto a nossa engrenagem depender da opressão, a palavra paz será apenas uma fala na boca dos canastrões que representam o triste teatro do bem e do mal, há séculos em cartaz na nossa arena social.

Parar de dar murro em ponta de faca e pôr um fim a esse tempo de guerra e opressão é a maior premiação de paz que daremos ao nosso caro amigo Boal, ao teatro do oprimido e a todos nós.

E o Brasil agradecerá.

ESCRITOS

Gostaria de indicar mais um projeto do agitador (no bom sentido,é claro) Walmor Dario. Trata-se do fanzine "Escritos", uma agradável opção para os que gostam de leitura e de conhecer talentos que não têm espaço no mundo das corporações.
Divirtam-se:

http://www.fanzineescritos.blogspot.com/

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

NÃO PASSOU

Os paralelepípedos da cidade não se arrepiaram.

A cada ano mais distante da ofegante epidemia que o jovem Buarque queria ver passar na avenida, o carnaval mais uma vez ficou bem distante do povo.

Povo que trabalhou, e muito, nos quatro dias de folias. Nos hipermercados, shopping centers, praias, hotéis e restaurantes estavam a postos todos os caixas, empacotadores, balconistas, recepcionistas, recreacionistas, garçons, ambulantes (os que ainda resistem) e funcionários temporários (dando tudo de si para conseguirem a graça de serem efetivados) que ao invés da folia labutaram com resignação e cansaço para melhor atenderem aos clientes de seus patrões.

Nos bairros e nas cidades pequenas, alguns populares tiveram a oportunidade de cair na folia. Seguindo a risca os mandamentos (não sei como alguma editora ainda não lançou o “Manual do folião”!), os pobres trios tocavam as músicas instituídas como sendo de carnaval e os foliões se divertiam conforme a regra: pulando, com as mãos para cima e tirando o pezinho do chão.

Enquanto isso, as emissoras de TV apresentavam os milionários trios da Bahia e as fantásticas escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo com suas celebridades (?) exibindo os padrões de beleza e conduta adequados à festa. E, como não poderia deixar de ser, ensinando ao povo que o carnaval “de verdade”, como tudo no nosso País, é um privilegio que cabe aos escolhidos e que o lugar do povo é nas pipocas, nos fundos das arquibancadas ou assistindo-os via satélite.

Nos sambódromos e nos trios, nos telejornais e nas revistas, o povo, a música e a folia serviram de coadjuvantes para o exibicionismo de celebridades vazias na forma e no conteúdo. E o samba das escolas, cada vez menos melódico, agoniza na avenida do luxo e dos efeitos especiais. Adeus batucada! Adeus Cartola e Ismael! O rio que passou na vida de Paulinho da Viola desaguou no mar da felicidade artificial e da alegria padronizada poluído pelo lixo da indústria cultural.

Resumindo: o carnaval foi igual ao resto do ano. Opressores, exibindo seus status, suas marcas e produtos, sua falsa cultura e seu vazio, de um lado e oprimidos, sonhando ocupar o lugar dos opressores e figurar lado a lado com eles (até quando?) de outro. Pelas ruas o que se viu foi uma gente que nem se viu, que nem se sorriu, se beijou e se abraçou. Com seus preceitos apolíneos, o carnaval pouco se parece com as festas dionisíacas (festas em louvor ao libertário (e banido) deus Dionísio) que lhe deram origem.

A kizomba de Martinho não é a nossa constituição, atrás do trio elétrico só vai quem paga caro pelo abadá e as mulatas hoje negam seus cabelos. Quando rola a festa, o povo do gueto fica de fora. No grande latifúndio chamado Brasil, o carnaval é uma festa para o povo assistir.

Entretanto, nas ruas de Pernambuco, a embriaguez do frevo, os maracatus e os palcos de seu carnaval plurirítmico varreram com suas vassourinhas os cordões de isolamento, camarotes e lobbys, sob a benção de Naná Vasconcelos e Alceu Valença, mantendo um facho de esperança (“ mais que nunca é preciso sonhar”) de que a vida ainda pode ser bem melhor. Resta saber por quanto tempo essa folia democrática resistirá aos apelos do status quo...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

PASSAGEM

O homem passou sozinho. Eu nunca soube seu nome e nem sua história. Tudo que sei é que os seus cabelos são brancos, não me perguntem por quais caminhos eles embranqueceram, há mais de dez anos e que todas as tardes ele passeava com a filha.

O homem e a menina passeavam juntos todas as tardes. Um oásis de amor nos tempos da glacial corrida neoliberal. Quando a menina estava uniformizada, o homem carregava sua mochila e ouvia com atenção suas estórias colegiais, de vez em quando opinava sobre algo, mas na maioria das vezes a palavra estava com a filha. Durante a noite, provavelmente, faziam lições, nas quais o pai ensinava e aprendia com a criança.

Nos dias chuvosos, dividiam o mesmo guarda-chuva, depois ela apareceu com um, menor e mais colorido que o do pai ; nas tardes ensolaradas tomavam sorvete ou um refrigerante na padaria. Quase sempre o refrigerante era o mais barato, desses que alguns classificam de refrigereco, mas para a menina não fazia diferença, mais importante que qualquer marca era a companhia do pai. Nas tardes de outono e primavera, os dois podiam ser vistos comprando sonhos do vendedor ambulante (Ah! Os carrinhos de sonho! Suas buzinas, seus vendedores. Até quando irão resistir ao domínio das corporações?). A menina saboreava e se lambuzava de açúcar e creme enquanto o pai trocava algumas palavras com o vendedor – o resultado do futebol, a beleza da tarde, o aroma dos doces ou coisas do tipo – e depois voltavam aos seus assuntos, suas observações sobre o bairro, as flores (Perdoem-me a inverossimilhança, mas no bairro, ainda havia algumas casas com jardins e flores naquele tempo), a vida dos animais e os acontecimentos da aula.

E agora, o homem passa sozinho. Onde estará a filha? É isso que me inquieta. O homem passou sozinho e se eu não o tivesse visto talvez eles ficassem guardados em um canto da minha memória e o meu consciente julgá-los-ia esquecidos. Mas, eu o vi. E sozinho.

Será que a menina hoje amamenta uma outra menina que caminhará com ela pelas tardes ensinando-lhe a vida do mesmo jeito que ela um dia ensinou ao pai de cabelos brancos? Será que está numa maternidade esperando apenas o pai chegar para dar a luz a um menino com o nome do avô?

Quem vê o homem passar não enxerga as esperanças e satisfações que ele carrega.

Ou terá a filha engravidado contra a vontade paterna e ele ao encontrar um conhecido em qualquer esquina maldirá a filha, esquecendo-se de toda a ternura daquelas tardes? Ou será a filha, que tendo crescido por caminhos contraditórios, hoje maldiz o pai? Talvez estejam brigados e o pequeno motivo (uma vaga na garagem, uma festa fora de hora ou uma palavra mal colocada) tem, hoje, mais peso que a lembrança dos dias de sonhos e lições. Talvez ela em casa cuide da mãe, sempre doente, enquanto o pai corre à farmácia em busca do mesmo medicamento que há anos mantém viva a trindade.

Quem vê o homem passando não enxerga o destino que o contorna.

Talvez o homem caminhe enquanto a filha amarga a falta de oportunidade nas filas de emprego ou, quem sabe, esteja recebendo uma promoção no emprego que o pai conseguiu pra ela pela indicação de um velho amigo. Estará a jovem moça a alguns anos de revolucionar as artes, a engenharia genética, a arquitetura ou a geopolítica com idéias que nasceram das inocentes conversas dos passeios vespertinos com o pai? Ou, esquecida dos sonhos da infância, desperdiça sua beleza e ternura, se esbaldando na artificialidade dos supérfluos globais? Ou será que, cansada da falta de oportunidades e sem enxergar uma perspectiva socialmente digna, decidiu emigrar e tudo que o velho pai tem como companhia são cartas (provavelmente, e-mails) em que ela reafirma o seu amor e jura que volta assim que o pé-de-meia garantir o futuro? Ou terá sido vítima da violência urbana e hoje more só no pensamento ou então no firmamento ("pode ser a Estrela D'Alva que daqui se olha") e assim todas as tardes têm para o homem o cheiro de uma vida que passou?

Quem vê o homem passando não enxerga as saudades que ele cultiva.

Tudo pode ter corrido simples e a moça está na mesma casa dormindo na mesma cama e só não veio com o pai porque preferiu ficar na sua janela virtual esperando um príncipe que tecle para ela. Pode ser que apaixonada passeie de mãos dadas com um rapaz de cabelos negros com quem divide sonhos e compartilha seu entardecer. Os dois namorados caminham, ternos como a simplicidade que exalam, e ela conta-lhe coisas da sua vida, segredos que seu pai não alcançou e delírios que são só deles dois.

E quem vê a mulher passando não enxerga a menina que um dia ela foi.

OUTRAS PALAVRAS

"A brincadeira acabou" e "A Madonna lavou minhas meias" são dois blogs de jovens pensadores que apesar de toda a propaganda contra o pensamento e a reflexão insistem neste cultivo.
Vale a pena!

http://abrincadeiraacabou.blogspot.com/

http://www.a-madonna-lavou-minhas-meias.blogspot.com/

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

DÍVIDA

O enterro foi triste à medida que todos são. Alguns choram o morto, e esses não eram muitos, e outros (no caso a maioria) choram o fim cada vez mais próximo de si mesmos. É nos enterros que a vida desnuda-se, nesses momentos a contagem regressiva vem à mente daqueles que não sofrem a perda. Aos sofredores, ela revela-se absurda: “Pra que tanto?”, perguntam-se ao perceberem que Deus, ou a própria vida, não respeita planos. O consolo dos crédulos é uma outra existência, uma felicidade eterna, uma punição merecida, um encontro futuro, um céu, uma colônia, um paraíso, um juízo final ou coisa que os valha.Mas, deixemos de lado as elucubrações e vamos aos fatos:

O enterro tratado aqui é do milionário Orlando Stewart. Filho do respeitável George Stewart, alto funcionário da indústria ferroviária que fez fortuna na compra e venda de terras. Corre pelas ruas de Lotolândia, cidade onde a família Stewart se estabeleceu e que a viu enriquecer, que o velho George, possuidor do segredo da localidade da construção das linhas ferroviárias, comprava terras por uma bagatela para vender, depois dos trilhos colocados, por uma quantia muito maior; dizem até que ele não agia sozinho e que muita gente participava dos lucros e que o negócio das terras era apenas um dos vários em que a família se envolveu, mas como em Lotolândia ninguém sabe o que é verdade e o que é intriga da oposição, oficialmente o Sr. George Stewart é o grande empreendedor que a lápide de seu busto na praça central da cidade diz ser. O certo é que o jovem Orlando recebeu de herança uma quantia muito maior que seu pai possuía quando chegou ao país.

Assim que se viu milionário com pouco mais de vinte anos de idade, o rapaz decidiu “ganhar o mundo”. Proferiu impropérios contra a cidade, chamou os habitantes de provincianos e declarou que aquele lugar não dava futuro e quem ficasse ali não sairia nunca do buraco. No que dependesse das possibilidades dos habitantes, principalmente os nativos da terra, fazerem transações como as do pai dele com certeza eles continuariam no buraco. Afinal, os privilégios assim como os infortúnios são hereditários em Lotolândia, mas o que importa é que, poucos meses depois do enterro do pai, o jovem se mandou para a Europa. Não sem antes deixar um filho dele na barriga da professora primária Lívia.

Enquanto Orlando assistia, totalmente chapado de L.S.D e maconha., aos shows dos Yarbirds, The Who, David Bowie e outros no Marquee Club em Londres e montava uma banda de rock em Oxford e bebia até cair nas festas no Bairro Latino e passava as tardes fumando e planejando a festa da próxima noite sentado no Café de Flore em Paris e pensava em suicídio ao ser trocado por uma namorada em Amsterdã e quase acabava com o estoque de heroína de Liverpool e fazia sexo com todas as prostitutas de Hamburgo, Lívia educava seu filho Cláudio com todo o sacrifício e força que requer uma ação desse tipo num lugar como Lotolândia. Com o parco salário da profissão as dificuldades tornavam-se cada vez maiores. O pouco de ajuda que recebiam era da irmã Lúcia, com quem morou até esta casar e mudar para São Paulo e de alguns ardilosos cujo interesse era apenas garantir uma fatia do bolo de uma possível herança.

Quando Orlando soube da existência do filho estava morando em Nova York e faziam mais de quinze anos que ele deixara Lotolandia; quem contou foi Evelyn, filha de um proprietário amigo do velho George e que fora sua colega de classe na faculdade, “na nossa distante juventude no terceiro mundo”, assim definiram a época, que ele encontrou em um bar no East Village. Em meio a doses de Whisk e alguns picos, ela contou sobre a professora e o filho dele. Na época Orlando nem deu atenção ao assunto, tanto que quando acordaram no seu apartamento, ele já não tinha mais certeza do que conversaram na noite anterior. Foi só quando a doença (um tumor numa região delicada do cérebro) se mostrou irreversível, “apenas mais dois anos de vida, no máximo”- decretou o Dr. Waltz, que ele sentiu o significado da paternidade.

Para Cláudio, a vida pesava como um caminho mal escolhido. Ao invés de gratidão e carinho, nutria pela mãe certa aversão, culpava-a pelo seu infortúnio, por ela cair no conto de um playboy, por não saber segura-lo. Revezava os sentimentos de amor e ódio de acordo com as dificuldades apresentadas pela vida. Chegou a dizer que ela não tinha sido nem mulher para reparar o erro enquanto era tempo. Lívia, que nunca fora apaixonada por Orlando e quando engravidou propositalmente foi pensando que a fortuna do rapaz seria a alforria da sua vida de professora, às vezes também era arrastada pela raiva de ver no filho a personificação do seu fracasso. Mas, mesmo com toda a revolta, o rapaz jamais saiu de perto da mãe e nem da odiada Lotolândia. Quando Lívia faleceu, vítima de um surto de dengue, o filho, então com quase trinta anos, era secretário de Roberto do Trilho, ex-funcionário da ferrovia e, na ocasião, vereador e presidente da câmara.

Foi nessa época que Orlando decidiu voltar para a terra natal. Passado o tempo da revolta, do “por que comigo?” e da auto-piedade, a vida começou a cobrar-lhe por aquilo que ele não foi. A primeira crise, ou o início do despertar, foi quando leu sobre um jovem brasileiro que passara anos na cadeia, acusado de um crime que não cometeu porque não tinha um advogado que o defendesse. Nesse momento o Dr. Orlando, o advogado que ele negara-se a ser quando recebeu a herança, pulou da tela do computador para cobrar-lhe as causas que ele não defendeu e as injustiças que ele não impediu. O Dr. falava com uma severidade e um realismo que o deixaram atônito. Desse dia em diante, Orlando passou a ser perseguido por todos os tipos que ele negara-se a ser.

Certa vez após conversar com seu administrador (Atílio Figueira, cunhado de George que multiplicava a fortuna em especulações), Orlando se viu entrando pela porta com um ar de desprezo. Enquanto seu negativo olhava a decoração do apartamento, se apresentava como Orlando Stewart “o revolucionário de Lotolândia”. Contou-lhe que com a herança que recebera, subvertera o poder local; criara centros de educação e auxiliara e investira nas causas da população. Contou-lhe ainda que sua filha Geórgia e seu filho Cláudio davam continuidade à revolução, que ele dizia ser permanente e que estava satisfeito em saber que após sua morte, ainda permaneceria vivo nos seus filhos e na sociedade que ajudou a criar. Orlando viu o noticiário mudar e ao invés de um documentário sobre a fome no terceiro mundo, a emissora exibia a história da revolução em Lotolândia e seus exemplos por todo o mundo, além de uma biografia do corajoso e heróico Orlando Stewart. Desligou a TV e foi dormir sobressaltado.

No dia seguinte, enquanto esperava para ser atendido pelo Dr. Waltz, viu-se vestido de médico. Desviou o olhar para a revista para evitar mais uma alucinação e se deparou com uma matéria sobre o médico brasileiro que aplicou quase toda a fortuna da família na colaboração de pesquisas e estudos para o avanço da medicina. O texto ainda revelava que, ironicamente, uma das descobertas feitas pelo Dr. Traria a cura de sua própria doença. O nome do tão aclamado médico era Orlando Stewart.

E foi nesse estado de colapso que ele, que sempre se disse inglês, assumiu Lotolândia como sua terra natal e decidiu resgatar o que restava da sua essência.

O encontro com Cláudio não foi nada fácil. Apesar de sonhar com o pai como os conquistadores espanhóis sonhavam com o reino da Traplanada na Argentina, o rapaz cobrou-lhe todo o sofrimento e privação de todos aqueles anos. Trocaram poucas palavras durante os dois meses que Orlando viveu por ali depois de sua volta. Sabendo que sua herança estava garantida, não via razões para um contato com o pai moribundo.

Contudo, o que mais incomodou o magnata na sua volta à cidade natal foi percebê-la exatamente igual ao dia em que ele foi embora. Ela em nada se parecia com aquela que o seu “negativo revolucionário” lhe narrara e que ele viu no tal documentário. As terras continuavam nas mãos da meia-dúzia de herdeiros dos parceiros do velho George, enquanto a população ou era obrigada a subsistir ou tinha que migrar em busca de oportunidades. Aquele cenário provocava a presença quase que constante do revolucionário ao seu lado lembrando-lhe como poderiam ser as coisas. Contando-lhe como a sua morte poderia ser gloriosa e o quanto ele poderia ter sido importante àquela cidade e feliz. Sobretudo, o quanto ele poderia ter sido feliz.

O enterro de Orlando, que acompanhávamos no início, deu-se oito meses depois do diagnóstico, talvez o Dr.Waltz não contasse com a carga de remorso que aquele corpo doente ainda acarretaria ou então quis deixar seu paciente morrer com alguma perspectiva de futuro, e, como sabemos, numeroso foi o cortejo, mas poucas as lágrimas pelo falecido. Digo poucas para não dizer nenhuma, afinal alguém deveria estar sendo sincero.

Durante a leitura do testamento, além de quase toda a sua fortuna (Orlando doou um dinheiro para a prefeitura construir um colégio e um hospital e comprou algumas terras para distribuir para famílias sem-terra), o pai deixou uma carta para o herdeiro:


“Dear Cláudio,

Esta carta chegara às suas mãos quando eu estiver sendo jantado pela terra. Não quero fazer aqui um relatório de meus erros nem falar sobre o quanto você se tornou importante para mim. Seria mentira.
Desde que soube que morreria logo, acredite, eu sempre achei que morreria bem velho, bem depois, houve épocas da minha vida que eu talvez tivesse até deixado de acreditar na morte ou esquecido dela, sei lá. Mas desde que eu soube que morreria breve, eu não consigo andar pelas ruas sem me deparar comigo mesmo às avessas. Na época da faculdade, ou do vestibular, ou antes, lembro-me de ter lido em um jornal, ou será que alguém me contou?, um texto em que o autor andando nas ruas se deparava com ele mais moço nos mesmos lugares, pois comigo acontece o contrário. Cada vez que passo pelas ruas vejo o advogado que poderia ter sido e em cada pessoa que me cumprimenta vislumbro uma causa que poderia ter ganho. Ele me diz que poderia ter sido brilhante, pois diferentemente de muitos, não precisaria se sustentar do ofício. Vejo os empregos que não gerei, as aulas que não dei, o ensino que não propaguei e as possibilidades que eu tive de circular um dinheiro e que decidi concentrar somente comigo e com os poucos que se aproveitaram dele em causa própria. Pra que? Pra terminar escrevendo uma carta como esta? Sei que no meu velório você vai ouvir frases do tipo, esse aí viveu! Absurdité. Muito pior que o mal que eu fiz é o bem que eu não causei.
Cada vez que um amigo de juventude vem me visitar, vejo na felicidade dele a vida que eu não soube construir. Quando vejo nos noticiários toda essa desgraça, eu sei e não adiante ninguém tentar me dizer o contrário, que eu poderia ter amenizado tudo isso. E eu assisto aos filmes que eu não produzi, percebo a arte que eu não propaguei. Quando eu olho o lixo que é alguns bairros da Lotolândia, cada pessoa que vive naquele esgoto deve a mim, e eu espero que você reverta esta dívida, boa parte da sua miséria.
Não quero compaixão nem piedade. Quero apenas evitar que o mal prossiga. É a última coisa que eu tenho a oferecer ao mundo que me levou consigo e do qual eu só gozei.
Eu estive por toda a Europa e por toda a América e hoje me sinto como se nunca tivesse saído de Lotolândia. And why? Porque eu nunca olhei o mundo. Eu só fui descobrir que o mundo não era a minha cabeça há pouco tempo. O que eu vi foram ruas, pontos turísticos e possibilidades de romances, sexo, diversões e bate-papos, mas as pessoas eu não vi. Vejo-as agora quando me encaro no negativo, neste espelho às avessas que só reflete os tipos que eu não fui.
Mais do que este dinheiro, eu te deixo a minha triste experiência e talvez seja só por ela, na esperança de que as tuas privações anteriores te façam dar um melhor destino a esse dinheiro que nunca foi nosso, que eu tenha voltado para te dar essa herança.

Orlando Stewart”


Hoje, anos depois de receber a carta (e a herança), Cláudio S. Stewart é sócio de uma indústria química, que vem sendo acusada de arrasar ainda mais a modesta qualidade de vida da região. Também é dono de uma emissora de TV, um canal de rádio e um jornal impresso, cuja maior utilidade é eleger os candidatos que trabalham para o empresário, que segundo o senso comum, tem o espírito empreendedor do avô. Seu próximo projeto é a construção de um grande shopping center no coração da Lotolândia.

Caso um dia, atormentado, ele decida escrever uma carta-testamento para seu herdeiro, prometo transcrevê-la com a mesma fidelidade.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

MUITO NATURAL

“Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção”, o conselho dado por Caetano Veloso em “Língua”, serve como exemplo do amor do povo brasileiro pela música.

Que País possui uma variedade tão grande de estilos e ritmos? E em que outro ela está tão presente no cotidiano?

A vida do brasileiro possui trilha sonora. Depois da efervescente “era do rádio”, a nossa época de ouro, não há momento da nossa História que não tenha uma música que o marque. Da eleição de Vargas ao enterro de Juscelino; do Golpe “militar” ao movimento pelas diretas; da Copa de 58 ao penta de 2002; tudo tem a sua trilha, tudo é representado por alguma canção.

O Brasil do mangue beat e da timbalada; dos choros, cirandas, marchinhas, frevos, cocos, baiões, partidos-alto, maracatus atômicos e bossas sempre novas. Do Abril pro Rock e do Free Jazz. Do Bumbódromo e do Sambódromo. Das batidas urbanas e da batida perfeita. O Brasil tropicalista. Um caldeirão de influências, tendências e - por que não? - idéias incríveis.
“Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval.” (Oswald de Andrade/Manifesto antropófago).

É na mistura de ritmos, na modernista antropofagia musical que revelamos a nossa identidade, que mostramos a nossa cara. Um País mestiço com uma música mestiça. O mundo inteiro está na música popular brasileira, assim como nas nossas cidades. Mas, essa absorção não resulta em confusão, ela fabrica a unidade. Uma singularidade que aproxima e distingue. Não é européia, nem oriental, nem africana e nem de nenhum outro lugar da América: é brasileira. Sem siglas nem chauvinismo.

Como definiu Mario de Andrade, a música popular brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação da nossa raça (entenda-se, o povo brasileiro).
“Tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português.” (Noel Rosa/ Não tem tradução).

E mesmo com todas as tentativas torna-la caricata ou deprecia-la, ela resiste nas pontes de Pernambuco, nas vitrines do Rio, nas chalanas do Mato Grosso, nos manos de São Paulo, nos clubes e esquinas de Minas, nas praças da Bahia, nos uirapurus da Amazônia. Do Oiapoque ao Chuí, é a música que sensibiliza, orienta e influencia a vida de nossa juventude. Nossa filosofia, sociologia, nossa maneira de nos vermos e ao mundo, tudo é traçado pelas nossas canções. É a música, junto com o futebol, que impede que as nossas barreiras sociais se transformem definitivamente em castas. É nela que a juventude carente de Estado e História se agarra para não submergir.

Nossa música está nos palanques e nas sociedades alternativas, nas rosas e nos serrados, nas procissões e nas torcidas organizadas, nas curvas das estradas e nos vilarejos, nas cozinhas e nas salas de recepção, em Angola e Montreux. Ela foi a grande estrela televisa na época da popularização dessa e hoje as telas de cinema, que já tiveram seu auge com os músicais, biografam nossos compositores.

É a força dessa música que faz os movimentos sociais agarrar-se aos compositores (como os estadunidenses agarram-se aos produtores de cinema) e dá a todo bom letrista o nome de poeta (Chico Buarque, Cazuza, etc.) ao mesmo tempo em que transforma grandes poetas em letristas (Vinícius de Moraes, Torquato Neto, Capinam, Cacaso e outros). Por sua espontaneidade e competência nossos músicos, e aqui é necessário destacar que não somos um país imperialista, são reconhecidos e requisitados no mundo inteiro. De Cesária Évora a Diana Krall, de Ryuch Sachamotto a David Byrne, músicos de todo o mundo não cansam de render homenagens à música brasileira e seus profissionais.

Todo brasileiro é um músico em potencial; por perceber isso é que o maestro Heitor Villa-Lobos fez tanto para que a música fosse valorizada na educação formal e chegou a dizer que todos os problemas sociais do nosso País seriam resolvidos com a formação de um grande coral. Se hoje a música não faz parte da grade de ensino dos nossos colégios, trata-se de mais uma deficiência do nosso sistema educacional.

O Brasil ama sua música. E será nas lições musicais, das harmonias dissonantes, que construiremos a melodia de nossa democracia social. Uma aquarela de diferenças que se aglutinam e formam uma unidade.

E aí então, para alegria de Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o Brasil merecerá o Brasil.


* Publicado também nos jornais "Página Dois" ( http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=4480) e "Brasileiros e brasileiras" (http://www.jornalbb.com/v_impr_fev08/pdfs/A10.pdf)

BLOG DO WALMIR

Gostaria de indicar aos leitores do "Mandando Brasa" o sensacional "Blog do Walmir".
Walmir Carvalho é um blogueiro dedicado, além de excepcional escritor. Seu blog é recheado de contos, que apesar de distintos são sequenciais.
Leve, divertido, sagaz e, o que para mim é o mais importante, sensível.
Quem ler não se arrependerá:

http://walmir.carvalho.zip.net/