quarta-feira, 7 de maio de 2008

CASA

Na rua há um chalé. Um único entre os espigões. Um lar em meio ao progresso.

Anacrônico? Talvez. Numa era em que basta estar fora dos moldes ditos modernos para ser considerado como tal, é bem certo que o distinto chalé seja, para os “moderninhos” moradores dos “Residencials”, um trambolho, um resquício de uma época enterrada.

E assim é. O modesto chalé está lá, carregando consigo não só uma época que passou, mas todas as que passam por ele. Embora não seja tão antigo quanto parece ser na cabeça dos filhos do progresso, não há ninguém da sua idade na tal rua. Mais velho então, nem pensar. Na sua altivez estão lembranças de seus irmãos que deixaram de existir para que outros interesses viessem à luz. E ele segue firme. Sua fachada está pintada, as janelas e o portão também. Os muros baixos, os únicos na rua das grades, alarmes e interfones, estão bem cuidados. O chalé se preserva. Mesmo ouvindo os rumores de que ali deveria estar algum outro pseudo gran fino de nome estrangeiro, ele permanece firme. Firme e asseado. Dentro dele correm vidas. Vidas que se protegeram no seu calor, vidas concebidas no seu aconchego. Vidas que se infiltraram em suas paredes e cujas marcas permanecem embaixo das pinturas.

Encostada no muro, a velha (Sim, eu disse velha, mas ela não liga para tal, sabe que é preferível ser chamada assim com carinho a ser desrespeitada entre risinhos e palavras escolhidas), a rainha do chalé olha mais uma tarde passando pela rua. Uma tarde de maio, mês das noivas e das mães. Nem Helena nem Macabea nem Carolina, ela olha a cidade indiferente ao tempo. Varre o lixo do elegante prédio atirado no seu quintal e cultiva suas lembranças. As lembranças da vida que passou e que continua a passar. Dos filhos que são pais, dos netos que batalham e dos bisnetos que virão. A vida continua seguindo independente do século e das ambições predominantes.

Seus olhos verdes, sua pele levemente maquiada, seu perfume doce e discreto, seu sorriso aos passantes, mostram que a vida ainda pulsa indiferente às tendências. Já viu muito, já ouviu de tudo. Viveu o suficiente para não ter certezas. Sua única convicção é a beleza incerta desta tarde. Desse mesmo muro viu guerras e revoluções. Marchas e marchas. Democracias e ditaduras. E nada abalou seu pensamento, sua fé e felicidade. Ela continua olhando pelo muro como se assistisse ao mundo, como se ele fosse um espetáculo apartado do seu chalé. Como se a vida das pessoas individualmente não formassem o mundo e como se o mundo em nada influenciasse a sua vida, seja na alegria seja na tristeza. Sorri para os bebês que passam nos carrinhos. São seus filhos, seus netos. Os bebês riem das mesmas brincadeiras e choram pelas mesmas necessidades indiferentes ao século. Nos tempos de Lacan já eram assim; já o eram antes mesmo da loba.

“La bohème” toca na sua vitrola e ressoa por toda a rua. "Je vous parle d'un temps que les moins de vingt ans ne peuvent pas connaitre..." ("Eu vos falo de um tempo que os menores de vinte anos não podem conhecer...") E ela cantarola com os olhos no entardecer da rua e em Montmartre ou no Alentejo ou na Galícia ou nas ruas de uma Santos que não existe mais. "La bohème, la bohème, ça voulait dire on est heureux ..." ("A boemia, a boemia, isso queria dizer que éramos felizes..."). Canta a vida, a felicidade, o amor e o tempo que fica mas não pára. O tempo queijo derretido da memória persistente de Dalí. "...Fallait-il que l'on s'aime et qu'on aime la vie..." ("...Era preciso que nos amássemos e amássemos a vida...")

Haverá um dia em que o chalé não estará mais ali. Cairá como as árvores da floresta em nome do dito progresso. Talvez até o endereço deixe de existir. "...Ni les murs, ni les rues qui out vu ma jeunesse... "("...Nem os muros nem as ruas que viram minha juventude..."). Quando esse dia chegar, a tal velhinha não mais fará parte deste mundo de famílias e presépios. Haverá um dia em que todo o zelo se transformará em destroços, a afeição em herança e o amor em lembrança, dando lugar a um outro amor que também se transformará em lembrança e assim sucessivamente. Assim sempre passará o mundo. Os homens vivendo suas vidas, construindo suas casas, dando vida às ruas e passando para outras vidas, outros sonhos. E toda essa pintura será sempre contornada pelo lápis do amor. O amor. Enquanto houver vida na Terra haverá amor. O amor da velha e do chalé. O amor das leoas e dos gorilas. O amor dos homens que marchavam. O amor da ópera e dos operários. O amor dos índios e dos antropólogos. O amor das noivas e das mães. A vida será sempre amor e procura.

Sigo pela rua, a velha e o chalé ficam para trás. Na vitrola toca “Eu e a brisa”. Eu já não a vejo, provavelmente alguma placa de “vende-se” anuncie o tal inventário. “...brisa fica pois talvez quem sabe...”; pode ser que se eu olhe agora já não distinga mais a velha do chalé, pode ser que o muro já tenha caído. “... o inesperado traga uma surpresa...”. Eu sou a velha e as suas incertezas. O tempo que eu a vi vendo só existe dentro de mim. Seus filhos e netos foram fecundados por mim. Ela é o outro e eu o bebê. A tarde como a vi só existe pra mim. Eu e a brisa. Eu agora sou o chalé. O chalé e o endereço que um dia deixará de existir.