quarta-feira, 1 de agosto de 2007

EMPREGO

- Hoje é o dia mais importante da minha vida.

Rolando acaba de pronunciar esta frase mágica enquanto se prepara para mais uma entrevista de emprego.

Trancado no banheiro, o rapaz olha-se no espelho, suspira e mentaliza palavras que, segundo um autor de auto-ajuda cujo livro ele acabou de reler há alguns dias, servem para reforçar sua auto-estima. Mesmo depois de centenas de entrevistas, ele continua nervoso. Há anos tenta arrumar um emprego e não consegue. Quando digo emprego, refiro-me à carteira-assinada, férias, folga semanal e todos os direitos trabalhistas que na teoria são para todos, mas na prática funcionam como uma grife exibida por uns poucos, assim como o ensino de qualidade e os planos de saúde, e não os “bicos” que o oferecem. Aliás, em “bicos” Rolando tem vasta experiência.

Mas, agora tudo vai mudar. Rolando está confiante. A experiência em entrevistas, que adquiriu durante todos esses anos procurando emprego, aliada aos conselhos do livro do PHD. em recursos humanos será infalível. Enquanto veste a roupa, Rolando relembra os animais, frutas e personalidades com os quais deve identificar-se. Saber isso é de extrema importância. Identificar-se com o animal errado já lhe custou uma assinatura na carteira. Felinos nem pensar. A independência da espécie assusta ao empregador que prefere sempre a fidelidade desinteressada dos cachorros.

Rolando sai do banheiro e vai para o seu quarto. Pega a pequena redação que fez imaginando-se daqui a dez anos para reler no ônibus a caminho da entrevista. Quer ter firmeza quando falar sobre o futuro na frente do entrevistador. Pára. Está pensando no absurdo disso tudo. Não quer mais sorrir, se comparar a frutas e animais, falar de suas qualidades, expor os seus defeitos e argumentar para um comprador imaginário a venda de uma caneta sem tinta também imaginária.” Que se foda esse hotel!” (a entrevista é para um cargo em hotel de luxo).” Não quero mais fazer papel de palhaço. Chega de pedir pelo amor de Deus para trabalhar”.

Rolando se tranca no banheiro. Está pensando nas dificuldades da vida. Na falta de perspectiva. No vizinho que é irmão do gerente e pediu para que fosse convocado para a entrevista. Talvez esteja esmorecendo. Lembra-se dos conselhos do PHD. “Não desista”, foi isso o que ele leu em todos os livros que estudou na ânsia de conseguir um emprego. E agora ele pensa em desistir, talvez esteja na hora certa, no lugar certo e não está percebendo. Relê a redação e todas as mentiras que imaginou. Na verdade, o que ele quer daqui a dez anos é poder exercer a profissão de arquiteto, passa dias lendo sobre o assunto e elaborando projetos. Mas, disso já abriu mão, é impossível. Na cidade aonde mora não há faculdade pública de arquitetura e ele não tem condições financeiras de cursar uma universidade em outra cidade. Já que não é para ser o que o seu talento pede, então qualquer coisa serve. Não, não é qualquer coisa. É um cargo em um hotel de luxo com carteira assinada e todos os direitos trabalhistas. Enquanto seus dejetos estão se dirigindo ao esgoto, ele está se lembrando do número de currículos que foram entregues para o cargo. Chora. As lágrimas mais salgadas são aquelas que nascem da dúvida. Pensa em Lucio Costa e no PHD. Lembra-se de arquitetos que, como ele, também vivem de "bicos" . Maldiz o País, repete que hoje é o dia mais importante de sua vida e sai apressado, como um motoboy, em direção ao ponto de ônibus.

Rolando está lá esperando ansioso o ônibus que o levará à dinâmica. Pensa nas possibilidades que novo emprego lhe ofertará. Relembra dos sacrifícios pelos quais passou. Está indeciso quanto ao seu desempenho, mas procura pensar positivo. De vez em quando, lhe vêm à cabeça os projetos arquitetônicos que sonhava realizar quando criança. Lembra-se que até pouco tempo atrás imaginava que a sua arquitetura seria reconhecida no mundo inteiro, que seus projetos lhe valeriam o título de “Gaudí das Américas”. Já não está mais prestando atenção na leitura da tal redação, está pensando no projeto que desenvolveu com a ex-namorada Sônia no intuito de conseguirem uma bolsa de estudos e que ficou na gaveta porque não tiveram condições de terminar. Pra falar a verdade, mal começaram: os bicos de garçonete e vendedor de consórcios que faziam na ocasião não deixavam tempo para concluírem o projeto e as conversas sobre a politicagem na distribuição de bolsas os desanimaram. Nos dias de folga eles batalhavam para encontrar um emprego melhor. Sônia agora faz bicos numa loja de calçados. Não tem carteira assinada, mas a comissão é boa. Rolando volta à leitura. Não quer lembrar de mais nada. De mais ninguém. O mundo não precisa de sua arquitetura, ele será muito mais necessário aos hóspedes do hotel. Lá está sua grande chance. “O vencedor não pode se prender às derrotas, nem aos derrotados. Precisa olhar sempre adiante. E confiante”. O PHD. poderia ser poeta. O ônibus chegou.

Não iremos acompanhar Rolando porque será desagradável andarmos em um ônibus lotado, que faz um trajeto para o qual seriam necessárias três linhas, apenas para ver Rolando conversando com Rui, um amigo que desistiu da carreira de ator e se dirige mal-humorado para a portaria do edifício onde trabalha; “Pelo menos estou trabalhando, a situação não está para brincadeiras”, concluirá Rui antes de se dirigir, com dificuldade, ao fundo do ônibus para descer rumo ao destino que lhe escolheu; ao olhar o amigo, Rolando lembrar-se-a dos aristas negros transformados em plantadores de cana-de-açúcar e refletirá sobre a liberdade dos nossos tempos, depois voltará à leitura de sua redação. Quanto à entrevista e os acontecimentos futuros, eles podem ser adivinhados:

Ao olhar o hotel, Rolando constatará, de corpo presente, o mau gosto do arquiteto do prédio e esperará cerca de quarenta minutos até que a dinâmica comece. Durante esse tempo, passará a maior parte imaginando um projeto arquitetônico verdadeiramente artístico e olhará desconfiado para seus rivais, tentando imaginar os trunfos que eles poderão ter e comparando-os com os seus. Durante a dinâmica perceberá que todos estão tão desesperados e desnorteados quanto ele. Falará sobre si mesmo, dirá os objetos, frutas, animais e personalidades com os quais se identifica; dirá em voz alta e de maneira, que dê a entender que é improvisada, o texto sobre o seu futuro; explicará porque está ali, o que espera da empresa e no que pode ser útil. Perceberá que todos os entrevistados parecem ter lido o livro do Phd e falam da mesma maneira e se identificam com as mesmas coisas. Não fará nenhuma pergunta e nem escutará mais do que já sabe. Sorrirá o tempo inteiro e, se tiver sorte, não precisará participar de nenhuma brincadeira constrangedora.

Alguns dias depois será comunicado que foi aprovado na dinâmica e se submeterá a mais uma três entrevistas. Contará sobre sua vida, fará redações, dará mostras de espírito de liderança, iniciativa, polidez, entre outros atributos. Ficará com as bochechas doendo de tanto sorrir e será contratado.

Quando souber da notícia, ele e a família abrirão uma Sidra e chamarão o vizinho que o apadrinhou para comemorarem juntos. O vizinho dará conselhos e falará sobre o temperamento do gerente. Rolando falará da dinâmica e contará que desde que pisou no hotel pressentiu que seu futuro estava ali. Sua mãe fará um breve resumo da vida profissional dela e a avó contará sobre os empregos do avô e dos tios. A irmã relatará o emprego do namorado e contará sobre o concurso para o qual estará estudando. A mãe dará graças a Deus e anunciará o início de um novo ciclo na família. Darão como favas contadas o ingresso da irmã no cargo público. Um grande amigo telefonará dando os parabéns e aconselhando o melhor carro para comprar. Os dois passarão mais de três quartos de hora falando sobre as possibilidades de “motorização”.
Rolando não dormirá na véspera do primeiro dia de trabalho imaginado o novo cargo, as atribuições, responsabilidades e direitos que o esperam. Fará atencioso o curso de treinamento para a função, assim como participará de todas as reuniões motivacionais que a empresa proporcionar-lhe. E será infeliz...

Perceberá, logo no início, que a dedicação e desempenho que o hotel exigirá tornarão inviável qualquer tentativa humanamente suportável de voltar aos estudos ( e nisso não excluímos a questão monetária), que a sombra da demissão sobrevoará constantemente sobre ele e que valorizar o emprego que conquistou com tanta dificuldade (a mídia fará questão de não o deixar esquecer que tem uma fila imensa de pessoas querendo o emprego dele) significará aumentar “voluntariamente” sua jornada de trabalho, estar sempre de acordo com as regras e buscando o melhor para a empresa, em detrimento do que é melhor para ele; esquecer que existe final de semana, feriados e dias santos, para efeito de folga, como é claro; deverá estar sempre disposto e feliz; nunca desistir de galgar “degraus acima” e jamais demonstrar sinais de cansaço. O que é uma contradição, já que o dono do hotel anda dizendo por aí que, por muito menos, ele mesmo já cansou.

3 comentários:

Walmir disse...

Uma reflexão cruel sobre esses tempos neoliberais, meu amigo.
Escrita de modo fluente, tragicômico, para expor os intestinos desse beco sem saída que morde os jovens, esculhanba com as famílias, distribui estresses.
Muito bom.
Paz e bem

Zilmara Dahn disse...

Você fez a biografia da minha pessoa jurídica.Principlamente quando diz: "E espera quarenta minutos pelo início da dinâmica."
É o humilhante exercício da tolerância quando a "sobrevivência" está em jogo.Triste a realidade.E seu texto, irônico e honesto, infelizmente já faz parte da vida de todos os jovens de vinte e poucos anos...

Parabéns pelos detalhes.

Você me dá invejinha!rsrsrs

Unknown disse...

o rolando do leandro é um entre zilhões que o moedor de carne humana do capitalismo vem estraçalhando há séculos.

mais uma vez, parabéns pela beleza e lirismo do texto -temos muito em comum.

bjs, saúde e paz, olavo