segunda-feira, 1 de outubro de 2007

HUMANOS

Um filme é o ponto de vista de um diretor sobre determinado tema.

Uso esta definição para falar sobre “Tropa de Elite”. O filme em questão, que traz elementos “pop” já usados em “Pulp Fiction” e “Cidade de Deus”, está longe de ser ruim. Conta uma estória (baseada no livro “Elite da Tropa”) bem em pauta no nosso cotidiano e uma produção competente. Mas, a intenção não é fazer uma crítica de cinema e sim falar de nós. Outra vez.

“Tropa de Elite” mostra o nosso dilema (Estado – Polícia – Corrupção – Tráfico – População) sob o ponto de vista de um policial idealista. A humanização da figura do policial do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) é um ponto importante para pensarmos nossa realidade. Porém a estória é contada sob o ponto de vista de alguém que considera que vivemos numa guerra e que o tráfico de drogas ilícitas é o maior inimigo do País. Aí está o calcanhar de Aquiles.

Quem conhece a História da nossa “Mãe Gentil” sabe que os nossos problemas sociais não têm origem no tráfico de drogas ilícitas. O nosso verdadeiro inimigo é a desigualdade abismal, que encontra paralelo apenas na Nigéria e Serra Leoa. O tráfico de drogas ilícitas é apenas a ponta de um iceberg que tem suas raízes no latifúndio, na concentração de renda, na manipulação dos meios de comunicação, no péssimo sistema de educação que resulta numa cidadania rota e em uma espécie de perpetuação das capitanias hereditárias. O desconhecimento, ou a não relevância, dessas causas esvazia o idealismo do herói.

Combatem-se criminosos e não o crime e suas causas. Conforme definiu o jornalista Caco Barcellos, é um ideal que tem como ponto de partida o preconceito. A questão do tráfico de drogas ilícitas pode ser resolvida facilmente pela lógica e não pela força. Afinal, quem torna esse negócio rentável são justamente as supostas vítimas dessa suposta guerra, ou seja, as pessoas da classe média e alta que consomem as tais drogas e compram objetos de furtos e roubos, e não os traficantes e os moradores das favelas. Assim também, o discurso que faz do policial o vilão esvazia-se. Ele também é vítima dos mesmos enganos.

Não foi criando esquadrões de “justiceiros” que Antanas Mockus, na prefeitura de Bogotá (Capital da Colômbia, na ocasião um país dominado pelo tráfico), venceu a violência que imperava na cidade. A questão foi equacionada através da “cultura cidadã”, uma série de ações que despertava a consciência de cidadania na população (policiais formadores de cidadãos, mímica nas faixas de trânsito, plano de desarmamento, lei Zanahoria, etc.).

Acima de policiais, traficantes, universitários, camelôs, políticos ou qualquer outro rótulo social, todos somos seres-humanos buscando a felicidade de acordo com a educação que recebemos, com os valores morais que temos como referência e com as possibilidades que encontramos para realizarmos aspirações que julgamos importantes.

O Brasil realmente vive uma guerra. Mas, esta guerra já dura quinhentos anos. Ela foi a responsável pela dizimação dos índios, pela desastrada abolição da escravatura (que não libertou, apenas deixou os negros “na mão”), pelo êxodo rural que entupiu as capitais, pela exportação em massa de nossos jovens como mão-de-obra barata e por todo esse sentimento de caos que domina a nossa população. Encarar como apenas uma guerra contra o tráfico é esconder, mais uma vez, a sujeira para debaixo do tapete. É como jogar xadrez sem visar atingir o rei inimigo, concentrando força apenas no ataque aos peões.

“Tropa de Elite” cumpre um papel importante ao humanizar a figura do policial (chega de Robocops!), expondo seus anseios e ideais, seus enganos e contradições. Porém, manifestações artísticas são apenas pontos de vista. Toma-las como parâmetro único para explicar a nossa realidade não é o aconselhável quando a intenção é construir uma sociedade conscienciosa.

A refazenda, de valores, posses e posições, proposta há mais de trinta anos por Gilberto Gil, faz-se cada vez mais urgente. Tomaremos atitudes conscientes em relação aos nossos problemas, usando as “armas” que possuímos (o voto consciente é uma delas, mas para isto é necessário conhecer nossa História e os nossos reais interesses.) para enfrentá-las ou continuaremos por mais quinhentos anos criando soluções simplistas com o intuito de arrastá-los ao invés de resolvê-los?

Afinal, como nos ensinou Fernando Pessoa: quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.


*Publicado também no Jornal Página Dois ( http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=4025)

7 comentários:

Talita Avila disse...

Mais uma vez nossos ricos problemas!...É nessa hora que penso pq deixamos nossos povos se desfazerem, pq não estamos plantando pra colher, pescando pra comer, até qdo teremos que ter capital pra sermos um pouco melhores... Os problemas não estão no hj, eles estão na raiz, e é preciso força e ao mesmo tempo delicadeza pra podermos por as mãos pra modificarmos...Somos como o barro fácil de moldar enquanto novo, mas apartir do momento que nossos ideais se fortificaram é mto dificil modificarmos, por isso a mudança vem de dentro de nós mesmo, só nos resta apostarmos nas novas gerações, na EDUCAÇÃO...A midia continua com seu ponto de vitsa, mostrando como nunca ao povo o que esta acontecendo, e no meio de tanta clareza o que nos resta é tentar acertarmos em nossos governantes....Quem sabe da Proxima!...heheh

Anônimo disse...

Boa Lendro mais uma vez a verdade nua e crua .....
Mas é mais facil fazer um filme sobre favelas mostrando negros e pobres para mais uma vez tentar esconder a culpula de onde começa a bandidagem. tentando fazer o povo esquecer que onde tem corrupção tem pessoas que querem o bem , e onde tem crime tem pessoas que querem apenas uma oportunidade para ser respeitados como seres humanos . Sera que um pai de familia que rouba 5 kilos de arroz poderia renunciar o mandato de pai ? Para ficar intocavel e após 4 anos ele voltar no mesmo mercado e ser aplaudido por muitos ao som de Zezé de Camargo e Luciano ... Ou apenas ele pode contar com seu salario digno de um policial ?
Ou apenas o que mais lhe faz falta por não ser um policial ou um politico . a dignidade de um homen o poder da sabediria da igualdade social e de uma boa educação na sua formação e na de seus filhos .

Sem mais.. Não sou escritor nem sou formado sou apenas mais um Brasileiro querendo mudanças por meios de ideias e atitudes.

celsolungaretti disse...

Leandro,

o tal policial idealista é personagem de ficção, claro. Os verdadeiros sempre se colocaram a serviço dos traficantes.

Aliás, o episódio mais pitoresco foi o dos anos de chumbo. Organizaram-se Esquadrões da Morte em várias cidades, com o objetivo declarado de justiçar marginais.

O chefão do EM de São Paulo, delegado Sérgio Fleury, foi transferido para o Deops e virou um herói da repressão ao comandar o assassinato de Carlos Marighella.

Mas, o bravo promotor Hélio Bicudo conseguiu, a duras penas, provar que Fleury era responsável por assassinatos. Mesmo sofrendo terríveis pressões e intimidações, ele reuniu evidências suficientes para o indiciamento de Fleury.

A ditadura tudo fez para preservar a imagem do delegado-símbolo (naquele momento) da luta contra o "terrorismo". Chegou até a criar uma lei isentando os indiciados da prisão preventiva que era decretada automaticamente. Esse casuísmo foi apelidado de "Lei Fleury".

Finalmente, Bicudo conseguiu provar que Fleury e seus cúmplices não matavam bandidos por ideal, mas sim para favorecer um traficante na disputa de território com outro traficante.

Moralistas, os militares desistiram então de proteger Fleury, que acabou morrendo numa aparente queima de arquivo.

Enfim, a lição é: policiais idealistas só se vêem no cinema.

Zilmara Dahn disse...

Não vi o filme e li pouco sobre ele. Pelo que você conta é mais um filme usando nossas misérias( em todos os sentidos)com trilha sonora e tomadas sensacionais.A polícia, ah..a polícia.Rezo a Deus para não ser assaltada e acabar precisando dela.Porque o tanto que eu já falei mal..A polícia é aquela relação de amor e ódio. É a mulher adúltera que você não expulsa de casa porque é a única que sabe limpar suas chagas.Enfim..é aquela que passa à noite e prende aquele marginal filho da puta que estava a 5 passos de te estuprar...quando vc vê ele entrando no camburão, fazendo cara de coitado, vc fala: diz agora aquele monte de merda filho da puta! Fala pros PM o tu que falou pra mim!
E a policia o leva.E faz o seu papel.
Nessas horas ela presta.
Na hora que o vizinho liga o som as 3 da manhã. Qual é a primeira coisa que todo mundo pensa?
E o barulho na fechadura, no meio da noite?

Não estou defendendo a polícia.Digo apenas que é a mulher adúltera.O mal necessário.
Problemas sociais e conflitos neste país dariam uns 100 filmes por ano.
E não são só os senadores que se abstem de decisões importantes. Quase todos os brasileiros o fazem e não consigo entender porquê..em outros países até os monges se unem em protesto, aqui as pessoas se unem na Copa e nas disputas entre o Boi garantido e Caprichoso. Eu não entendo esse país, essas pessoas!Essa falta de compromisso, essa eterna rede de balanço que não deixa ninguém levantar. Acho que o problema é o clima.Muito sol dá sempre em festa,cerveja e amnésia.Se aqui nevasse, talvez as pessoas parassem mais para pensar,as familias fossem mais próximas e talvez, tomassem até gosto pela leitura.

Sonhar, sonhar.Em se tratando de Brasil, é o que nos resta.

Talita Avila disse...

Identidade Indígena


Em memória ao índio Chico Sólon

O texto é o testemunho das lágrimas de uma indígena vendedora de bananas, sua avó a refugiada Maria de Lourdes de Souza, filha do índio Chico Sólon, desaparecido das terras indígenas paraibanas por volta de 1920, quando se instalava ali, a neocolonização da agricultura algodoeira causando a fuga de famílias indígenas, oprimidas pela escravidão moderna.

Nosso ancestral dizia: Temos vida longa!
Mas caio da vida e da morte
E range o armamento contra nós.
Mas enquanto eu tiver o coração acesso
Não morre a indígena em mim e
E nem tão pouco o compromisso que assumi
Perante os mortos
De caminhar com minha gente passo a passo
E firme, em direção ao sol.
Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro
Carrego o peso da família espoliada
Desacreditada, humilhada
Sem forma , sem brilho, sem fama.
Mas não sou eu só
Não somos dez, cem ou mil
Que brilharemos no palco da História.
Seremos milhões unidos como cardume
E não precisaremos mais sair pelo mundo
Embebedados pelo sufoco do massacre
A chorar e derramar preciosas lágrimas
Por quem não nos tem respeito.
A migração nos bate à porta
As contradições nos envolvem
As carências nos encaram
Como se batessem na nossa cara a toda hora.
Mas a consciência se levanta a cada murro
E nos tornamos secos como o agreste
Mas não perdemos o amor
Porque temos o coração pulsando
Jorrando sangue pelos quatro cantos do universo.
Eu viverei 200, 500 ou 700 anos
E contarei minhas dores pra ti
Oh!!! Identidade
E entre uma contada e outra
Morderei tua cabeça
Como quem procura a fonte da tua força
Da tua juventude
O poder da tua gente
O poder do tempo que já passou
Mas que vamos recuperar.
E tomaremos de assalto moral
As casas, os templos, os palácios
E os transformaremos em aldeias do amor
Em olhares de ternura
Como são os teus, brilhantes, acalentante identidade
E transformaremos os sexos indígenas
Em órgãos produtores de lindos bebês guerreiros do futuro
E não passaremos mais fome
Fome de alma, fome de terra, fome de mata
Fome de História
E não nos suicidaremos
A cada século, a cada era, a cada minuto
E nós, indígenas de todo o planeta
Só sentiremos a fome natural
E o sumo de nossa ancestralidade
Nos alimentará para sempre
E não existirão mais úlceras, anemias, tuberculoses
Desnutrição
Que irão nos arrebatar
Porque seremos mais fortes que todas a células cancerígenas juntas
De toda a existência humana.
E os nossos corações?
Nós não precisaremos catá-los aos pedaços mais ao chão!
E pisaremos a cada cerimônia nossa
Mais firmes
E os nossos neurônios serão tão poderosos
Quanto nossas lendas indígenas
Que nunca mais tremeremos diante das armas
E das palavras e olhares dos que “chegaram e não foram”.
Seremos nós, doces, puros, amantes, gente e normal!
E te direi identidade: Eu te amo!
E nos recusaremos a morrer
A sofrer a cada gesto, a cada dor física, moral e espiritual.

Nós somos o primeiro mundo!

Aí queremos viver pra lutar
E encontro força em ti , amada identidade!
Encontro sangue novo pra suportar esse fardo
Nojento, arrogante, cruel...
E enquanto somos dóceis, meigos
Somos petulantes e prepotentes
Diante do poder mundial
Diante do aparato bélico
Diante das bombas nucleares

Nós, povos indígenas
Queremos brilhar no cenário da História
Resgatar nossa memória
E ver os frutos de nosso país, sendo dividido
Radicalmente
Entre milhares de aldeados e “desplazados”
Como nós.


Eliane Potiguara
Textos do livro “METADE CARA, METADE MÁSCARA” Global editora

Silvio Campos disse...

Nem toda tropa é de elite.
Toda elite é uma tropa.
Tropeiros pisoteiam o chão
com cavalos,
nos festejos santificados pelo
Brazil afora.
É muito comandante pra pouca
tropa,
e as tropas trotando ao
"Deus dará",
esquecidas que Deus já deu:
na razão uma bússola,
no sentir o horizonte.
Ah... que Tropa de Rinite.

Walmir disse...

Pois é crítica importante, Leandro. Temos estas falhas incrustradas na cultura imediatista de classe média e elite, embora sejam elas mesmas a doença e a causa. O que não quer dizer que não devemos combater o tráfico, fechar os olhos ao imediato, mas as medidas de real alcance têm que ser tomadas.
Quanto ao filme, ainda não assisti. Foi lançado esta semana e não me animei a pegar a cópia pirata.
Gosto que o cinema brasileiro esteja tomando-se de boa produção e consistência técnico-artística para abordar, do ponto de vista ficcional, a vida brasileira.
Paz e bem