segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

AH, ARACY!


Em 2009 comemoramos os 75 anos do disco “Em plena folia”, o primeiro disco da cantora Aracy de Almeida. Aracy de Almeida.

Araca. A dama do Encantado. Rainha dos parangolés. Arquiduquesa. O samba em pessoa. Alegre, contente, cigana, terrível. Ela era o samba.

Aracy é coisa nossa. Cantora por excelência: ainda criança cantava hinos religiosos em igrejas batistas e, escondida dos pais, entoava pontos de candomblé nos terreiros. Em 33, “farta de cantar de graça”, foi descoberta por Custódio Mesquita que a levou para a rádio Educadora. Gravou “Em plena folia” em 34 (acompanhada por Pixinguinha e sua orquestra) e conheceu o sucesso em 35, com o samba “Palpite infeliz” de Noel Rosa, com quem se apresentava, “em casas suspeitas, no Mangue, no baixo meretrício”.

Considerada pelo poeta da Vila como a cantora que melhor interpretava suas composições, Araca viveu durante anos o estigma (um dos tantos que a perseguiam) de “intérprete de Noel”. Afinal, grande parte dos seus clássicos tornou-se sucesso na voz dela (Último desejo, Meu barracão, Três apitos, Cansei de pedir, só para citar algumas) que foi a responsável pelo resgate da memória do amigo - esquecido após sua morte precoce - gravando os antológicos Lps lançados pela Continental (da primeira leva de lançamento de Lps no Brasil): Aracy canta Noel, com capa de Di Cavalcanti, arranjos de Radamés Gnattali e texto de Fernando Lobo (ta bom ou precisa mais?), o que levou a uma reavaliação da obra desse que hoje é considerado um dos maiores gênios da nossa música popular.

Mas nem só de Noel se fez o repertório dessa dama da música brasileira, fã de Ella Fitzgerald, Mozart e tango argentino, leitora de Freud e Schopenhauer, seu bom gosto a manteve próxima dos grandes compositores de sua geração. Sua voz anasalada coloriu obras de praticamente todos os grandes compositores da “época de ouro” e alguns de outras gerações. Gravou Ary Barroso (Camisa amarela), Custódio Mesquita (Saia do caminho), Assis Valente (Fez bobagem), Adoriran Barbosa - numa parceria inusitada com Vinícius de Moraes - (Bom dia, tristeza), Antonio Maria (Se eu morresse amanhã), Dorival Caymmi (Quem vem pra beira do mar), Paquito (Não me diga adeus), Wilson Batista (Louco), Caetano Veloso (A voz do morto – composta em sua homenagem), entre tantos outros, além de garantir ser dela o mote “Amélia é que era mulher de verdade” que serviu de inspiração para o clássico “Ai que saudades da Amélia” de Ataulfo Alves e Mário Lago.

Seu talento sobreviveu a modismos e mudanças. Fez shows com Carmem Miranda, Billy Blanco, Sérgio Porto, Paulinho da Viola, Jorge Ben(jor), Toquinho, além do histórico espetáculo (que virou Lp) “O samba pede passagem”, de 1965, em que dividiu o palco do teatro Opinião com Ismael Silva, MPB4, Baden Powell e o Grupo Mensagem (do qual faziam parte Sidney Muller e Luís Carlos Sá), com texto de Oduvaldo Vianna Filho e direção de João das Neves e Armando Costa. Em 1980, gravou o Lp “Ao vivo e à vontade” (lançado apenas em 1988, pouco depois de sua morte), no teatro Lira Paulistana (casa onde se apresentava a vanguarda musical de São Paulo nas décadas de 70 e 80). Com produção e texto de Zé Rodrix, é um dos discos mais espontâneos da discografia brasileira. Lá é possível ouvir seus “esporros” com a banda e a platéia, suas estórias sobre Noel e suas brincadeiras e erros, dando a nítida impressão – apesar dos poucos 34 minutos - que o show está inteiro ali, sem cortes.

Considerada por Mário de Andrade como a dona de uma voz quente e sensual e aclamada por Di Cavalcanti como a maior cantora do Brasil, a "arquiduquesa do Encantado" jamais se comportou como a majestade que era. Dona de um comportamento irreverente e transgressor demais para a época, não tinha papas na língua e falava o que lhe vinha à cabeça, além de frequentemente levantar as blusas e exibir os seios para os amigos estivesse onde estivesse, vestir-se com botas e calças cumpridas e discutir sobre existencialismo, futebol e artes plásticas ou citar a bíblia nas mesas dos bares cariocas até de amanhecer. Tudo isso muito antes da queima de sutiãs.

Por outro lado era uma mulher simples, cuja generosidade chegava a encabular os amigos, dedicada a criar cachorros e plantas, que preferia sua casa no Encantado aos luxuosos apartamentos da Zona Sul, tão cobiçados pelos famosos da época. Sair do Encantado é que era o X do problema.

Enjoada de cantar, e com o “mingau grosso demais”, abandonou a carreira, deu seu aval ao tropicalismo, parou de beber, amadrinhou a banda percussora do punk brasileiro Joelho de Porco (ela bem pode ser considerada a primeira punk do nosso país) e virou jurada nos programas de calouros de Chacrinha e Silvio Santos, imagem pela qual ficou conhecida pelas gerações mais jovens (hoje, nem tão jovens assim).

Numa época em que as cantoras preferidas do público são as que se preocupa mais com a malhação que com o canto, que a rebeldia é fabricada em escritórios de propaganda e que gostar de música significa entoar refrões que qualquer bebê balbuciante seja capaz de reproduzir, Aracy com sua afinação precisa, seu despojamento, sua divisão comovente, sua cadência absoluta, sua malandragem e seu repertório delicado e de alto nível não é exatamente o que se espera de uma grande cantora.

Talvez um dia o Brasil lhe faça justiça (tomara que nenhum outro país precise fazer primeiro) e a cantora de talento ímpar suplante a figura caricatural da jurada ranzinza e mal humorada.

Enquanto isso não acontece, vamos comemorar as bodas de brilhante da nossa música popular com a voz dessa mulher encantada que foi o samba em pessoa: Aracy de Almeida, a Billie Holiday brasileira.

3 comentários:

Anônimo disse...

Demais o texto, pesquisa fantástica...vou até baixar algumas dessas pérolas pra ouvir...
Aloha
RUB

Anônimo disse...

mais uma vez: excelente, leandrão!aracy é muito querida aqui em casa, e desde que me entendo por gente,tenho a imagem dela (ainda muitojovem e bela) na cabeça - meu paié noel total, e quem não é?como vc mesmo escreveuTalvez um dia o Brasil lhe faça justiça (tomara que nenhum outro país precise fazer primeiro) e a cantora de talento ímpar suplante a figura caricatural da jurada ranzinza e mal humorada.
VIVA ARACY!
abs
olavo

Walmir disse...

Mano,
Aracy é comovente. Aquela imagem de jurada chata ficou, por conta da TV. Foi onde a TV conseguiu encaixá-la e ela, infelizmente aceitou. Mas aquilo é como o poeta que um dia, reclamando que perdeu a vida por educação, foi traficar armas na África. O que importa mesmo é ouví-la. As armas na África
não tiveram nenhuma importância.
Paz e bom humor, mano.