quinta-feira, 9 de agosto de 2007

ARTISTAS, CRIANÇAS E ESPERANÇAS

Dança de chamas!

Quando o sinal fica vermelho para os motores é sinal que o trânsito está livre para a arte. E no palco de asfalto brilham Toni, Augusto, malabares e piruetas. Sem patrocínio, nem glamour, defendem suas artes, suas vidas e alguma esperança. *

Toni ama o malabares. Sua memória não alcança um tempo em que esteve longe do malabarismo. Quando criança juntava-se aos artistas de rua do bairro, acompanhando-os em suas exibições, aprendendo a manejar os instrumentos. Na idade em que se fez necessário procurar um emprego não conseguiu pensar em outra coisa que não fosse o malabarismo, a encenação, a arte circense. Cada colega seguiu um caminho. Uns tentaram uma dignidade honesta, outros pensam que se tornaram dignos na desonestidade. Alguns morreram, outros estão vivendo. Algumas almas de artista se conformaram com o papel de serviçais, algumas almas sem arte enganam no papel de artista. Toni fugiu com o circo de sua cidade, cruzou o País fazendo malabarismos e todo dia exibe seu espetáculo para um público apressado e sem tempo para pensar em diversão.

Esse é o seu auge, a verdadeira concretização de seus sonhos. Se for dito aqui que Toni tem alguma outra ambição profissional( fora o ofício de jardineiro que também exerce pelas manhãs), será mentira. O ofício de levar divertimento e alegria às pessoas em trânsito como um “take” de sonho em meio à engrenagem da rotina é a sua total realização.

Toni cospe fogo. Augusto vibra com o número do amigo. Os malabares em chamas sobem, circulam, descem, invertem as posições. Brilham nas mãos do artista que, como Renoir, faz arte por diversão. Diversão e algumas doses de conhaque. Quando o inverno aperta e as roupas de Toni não o defendem totalmente do frio, a solução é esquentar-se através da bebida. E, de conhaque em conhaque, Toni também brilha. Não para motoristas sempre preocupados com seus empregos, suas prestações e suas economias. Brilha para ele mesmo, para seus amigos de ofício – violeiros de esquinas, artistas plásticos de cerâmica, cantadores de ônibus, poetas de rua ou simplesmente comerciantes ( vendedores de balas velhas, engraxates, etc.) - e para muitos que a insensibilidade e a robotização ainda não alcançaram. Brilha para João Bosco.

É com a admiração e valorização de boa parte de seu público, aliado ao salário de enfermeira da sogra, que Toni sustenta sua família. Grande parte da alimentação, medicamentos e até material de estudo para Augusto, foram conseguidos através de permuta com os motoristas que pagam em espécie a faxina espiritual proporcionada pelos artistas.

Quero deixar claro que o título de artista é por minha conta. Toni jamais se referiu ao seu ofício como arte. Para ele sua função é a de um animador público, um circense de rua, resumindo: jamais pensou em uma auto-definição. Toni é. No princípio era o verbo. As invenções divinas ocorridas desde então não modificaram sua personalidade.

Se, por acaso, o cachê é curto, ou os motoristas fingem ignora-lo, Toni sente. Sente pena pelos enganos que desviam tais pessoas do lazer, da arte e, provavelmente, da própria vida. Mas, sua alegria está sempre lá. Foi devido a essa inabalável alegria que Dona Jurema (ou Tia Jurema, como eles a chamam), mãe de Augusto, decidiu pedir ao malabarista que incorporasse o filho no seu grupo.

“Não sei mais o que fazer com esse menino”, contou a mãe, “quer ser “ginastista”, fazer a tal de ginástica olímpica, mas vê se tem condições? Já falei pra ele que aqui não tem jeito; que tem que arrumar outra coisa, mas não adianta. Agora anda metido com aquela molecada lá do outro lado, daqui a pouco ta roubando também. Não tem como você levar ele contigo na parte da tarde depois da aula? Assim ele dá as piruetas dele por aí e sossega o rabo, senão eu não sei o que vai ser...”

Depois dessa conversa Augusto passou a ser a companhia diária do malabarista. Toni sente-se responsável em manter viva a esperança da criança que sonha em ser ginasta. Sabe que ele não gosta do ofício, assim como sabe que a menina ginasta que olha de dentro de um dos carros o malabares, faz a ginástica contra a vontade. Talvez queira ser tradutora, talvez já seja artista plástica, cozinheira ou qualquer outra coisa. Mas, a mãe a quer ginasta. Tratá-las-emos como mãe e menina porque o vidro fechado do carro não permitiu uma aproximação para perguntar-mos o nome; o rapaz no carro ao lado, que ouve um CD de Chico Buarque (não sei se o CD é inteiro do Chico ou é alguma "miscelânea", a música é "Brejo da Cruz") e veste uma camisa de Che Guevara, cujo único sentimento é medo que algum malabares caia no seu carro, chama-se Paulinho; mas isso eu sei porque o conheço de outros lugares; seu vidro também está fechado. “Não olha muito, senão a gente vai ter que dar dinheiro!”, adverte a mãe ao ver o fascínio que o malabarista exerce sobre a filha. O sinal abre (para as máquinas, fecha para os artistas) e os carros vão. Augusto quer a oportunidade da menina, a menina quer a liberdade de Augusto. Toni sabe que não existe liberdade, mas sente-se feliz. Aproveita o movimento dos carros para contar ao menino estórias que viu nas esquinas, que ouviu dos mais velhos. Ensina que pior que a pobreza material é a pobreza da alma. Mostra-lhe as várias moradas que existem entre o sonho e a frustração. A criança ouve com atenção. Sonha.

Em casa, a mãe da menina ginasta colaborará com crianças carentes. Para ela será um dinheiro bem gasto: caridade. Uma espécie de couvert para os artistas que animam o espetáculo. Uma ajuda para crianças que não incomodam. Não aparecem nos sinais, não levam odores ao alcance do seu olfato, nem exibem um linguajar chulo e incorreto. São representadas por artistas famosos, amparadas por “gente que faz”; nelas vale a pena investir. Basta uma ligação. Não é necessário conversar e nem há a ameaça de um contato maior. Finalizada a ligação estará certa de que faz, e de maneira impecável, a sua parte para melhorar o País.

No dia seguinte, no mesmo sinal, Toni e Augusto, Ogum e Oxóssi respectivamente, estarão lá: soldados incansáveis, na luta pela arte e pela esperança, defendendo, sem saberem, a espontaneidade e a alegria de um País em deformação.



* Eu sei que o tema “vocação artística do povo brasileiro versus robotização do capitalismo” não é novidade nos meus textos. Mas, antes que a minha criatividade depreciada, justifico-me argumentando que a exemplo dos pintores impressionistas tenciono abordar a mesma questão por ângulos, luzes e perspectivas diferentes; como Monet fez com a Catedral de Rouen e Van Gogh com os girassóis, só para cita alguns exemplos. Talvez, se a minha inspiração fosse barroca seria mais confortante, mas de qualquer forma prometo olhar em outra direção assim que o tema estiver esgotado, ou melhor, resolvido.

** Incluído no livro "Desconstrução" e publicado também no Jornal Página Dois (http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=3743 )

3 comentários:

Zilmara Dahn disse...

ótimo e oportuno texto.Principalmente quando cita levemente aquela campanha em que ajudamos o próximo de forma distante e higiênica. Colocam todos os seus subordinados de olhos azuis para pedirem sua contribuição...mostram crianças desnutridas,abandonadas e miseráveis. Você, morrendo de culpa por poder comer uma caixa de Bis a hora que quiser, vai lá e doa.A quantia que eles estipulam e não a que você pode dar.E depois de tudo isso, você percebe que ainda por cima te cobraram a ligação mais impostos, que eles nunca dizem quanto é.E a emissora ainda tem desconto no imposto de renda por ter contribuido para Unicef com o seu dinheiro. Hunf...


Eu ainda prefiro pagar lanche para os artistas do sinal. E também para o Seu Zé que toca gaita no ônibus maravilhosamente bem.Estende a mão quando termina em nome de sua arte e nada mais.Não chora suas mazelas.Embora viva sujo e maltrapilho, tem uma saúde de ferro.

É feliz...veja você.

Walmir disse...

Num tempo muito atrás - 40 anos atalvez - sobrevivi fazendo espetáculos em escolas, em frente de lojas, em praças. Biscateava arte que transeuntes e outros tomavam, como ainda hoje tomam, na conta de bordão sofisticado que uma trupe de mendigos usava pra tirar dinheiro deles.
Sempre me incomodava quando algum me observava penalizado.
Eu era um feirante.
Ninguém se penaliza com feirantes que vendem pepeinos, tomates, couve.

Anônimo disse...

"a novidade qui há nu brejo da cruz...", certissimo, mandou bem leandro, interessante paralelo entre as contibuições, a forma descomprometida,"limpa" e distante em contrapartida ao envolvimento, respeito e vontade de mudar,interagir e ajudar, 'QUEM VAI DAR MAIS DINHEIRO PRÁ GLOBO AE GENTE, OH LOCO MEU!!!!!!!!rsrsrsrsrs, abraços lele.