quarta-feira, 15 de agosto de 2007

DANÇA DAS CADEIRAS

Margarida parece desgovernada. Acaba de perder o emprego de gerente comercial de uma grande rede.

Sem saber o que pensar e muito menos o que fazer, anda sem destino pela cidade. Ela é uma desempregada. O desemprego que sempre considerou uma exclusividade dos derrotados agora lhe pertence. Alguma coisa está errada. Com certeza alguém “armou” para pegar o seu lugar. Inveja. Sim, foi inveja e não incompetência o motivo da injusta demissão. É um paradoxo. Seus patrões sempre souberam a maneira certa de agir; ela sempre aprovou e justificou com veemência todas as demissões ocorridas nos últimos anos; eram necessárias, tinham de acontecer. No mercado de trabalho não há mais lugar para médios e regulares, só quem é bom, muito bom, é que permanecerá empregado. Por isso, seus amigos foram demitidos. Por não ouvirem seus conselhos, não seguirem seu exemplo. Por não “vestirem a camisa da empresa” como ela.

E agora? O que fazer com a “camisa” da empresa? Demitida sem uma justificativa convincente. Perdida no “olho da rua”. Ela e a “camisa”. Desempregada. É assim que terá de responder quando perguntarem sua profissão atual. Sente vergonha. Vergonha do seu fracasso, vergonha de não estar entre os melhores, de ser uma desempregada. Vergonha de enviar currículos para gerentes que jamais irão lê-los. Como uma cortina trocada, não vê como um substituto pode ser mais útil. A colaboradora fiel do sistema é agora sua vítima. Chora como um cão esquecido pelo "dono".

Margarida baixa a cabeça. Não sabe como se colocar perante suas idéias. Nesse momento, ela é tudo que sempre atacou. Dói. Onde foi que errou? Por que ela? Com certeza cederão seu lugar a alguém menos capacitado. Será que alguma daquelas subalternas teria se oferecido sexualmente a algum diretor? Será que fora esse seu erro? Errou por ser correta demais? Por não se corromper nesse mundo sujo? Ah, com certeza! Não há outra justificativa.

Na vitrine o vestido, que ela iria usar na sua festa de aniversário, continua esperando por ela. Mas, agora ela é uma desempregada. Desempregados não têm direito de comemorarem aniversários. Comemorar com festa, pelo menos, é inadmissível. Aonde já se viu? Até chegar o seu aniversário ela já terá arranjado outro emprego. Pensando melhor, com o dinheiro dos seus direitos abrirá um negócio próprio. Talvez o dinheiro não dê. Precisa saldar suas dívidas. O carro novo que acabou de comprar precisa ser pago. Se vender o antigo dá para pagar o novo. Jamais. O antigo ela deu de presente para sua mãe, mesmo que a mãe nunca use o carro, ela não pode vender. É necessário. E de mais a mais, a sua adorada mãe não tem culpa do seu fracasso. Tem também a faculdade. Tudo bem que decidiu cursar administração apenas com o intuito de ser promovida, de ocupar um cargo na diretoria. Mesmo assim não pode abandonar. Irá até o fim. Pagará até o último centavo por seu diploma universitário. Vale a pena. O dinheiro que receberá pela demissão, injusta conforme ela pode constatar, dará para pagar as mensalidades da faculdade e uma boa parte das prestações do carro. E os móveis novos? E o cartão de crédito? Precisa saldar as prestações do Cruzeiro que consumiu nas férias. Em todas as palestras proporcionadas pela empresa, e também nos livros que leu, seus mestres sempre disseram que o vencedor é aquele que faz dívidas, que tem contas para pagar. Ela seguiu os conselhos a risca e agora é uma desempregada.Mesmo assim, valeu a pena. Tudo o que ela conseguiu deve ao grupo. Usará o dinheiro para pagar as contas e rapidamente arranjará um novo emprego. Em outra parte da cidade alguém escuta um samba antigo de Noel Rosa (“velharia, não é do meu tempo”, diria Margarida) que diz: “Quanto a você da aristocracia que tem dinheiro, mas não compra alegria há de viver eternamente sendo escrava dessa gente que cultiva hipocrisia”.

“Deus sabe o que faz”, sussurra, “nada do que acontece é para o nosso mal.” (Abro este parêntese consciente de que parecerei intrometido, mas não posso deixar de incluir uma pergunta pessoal em meio aos pensamentos da recém-excluída Margarida; sei bem que filosofar perante a dor alheia é inconveniente, mas não tenho saída; se não perguntar me sentirei omisso: Caro leitor, terá Deus alguma coisa a ver com o excludente sistema neoliberal? Será ele o responsável pelo culto ao lucro? Terá ele a mesma concepção limitada da nossa raça em que tudo está dividido em dois, bem/mal, sorte/azar, ser - humano/ natureza, trabalhadores/vagabundos, vencedores/perdedores, etc. e tal, ou tudo faz parte de um todo, no caso Ele mesmo, sem adjetivos?).

Margarida ainda está parada diante da vitrine (Graças a Deus o nosso debate filosófico não prejudicou em nada nossa observação), pensa nas compras que fará quando arranjar um novo emprego. Talvez tenha dificuldades para conseguir. A situação do País está difícil até para os capacitados. Caso não consiga, a saída será emigrar. Como um girassol, ou melhor, um giraemprego, giradinheiro talvez seja mais oportuno, olha em todas as direções a procura de alguém que possa lhe oferecer uma oportunidade instantânea. Sempre foi assim, sempre girou a procura de vantagens, de lucro, de um “status”. Por isso, venceu. E a aparente derrota não significa o fim de sua batalha. Tem contatos, boas relações, é bem vista. Se os excluídos precisam da caridade governamental, ela não. Jamais será uma excluída. Se tivesse vocação para a derrota teria seguido seu talento e estaria nesse momento dando aulas para criancinhas (provavelmente menos cansada e mais realizada e, com certeza, sendo muito mais útil; desculpem-me a nova intromissão, mas ela esqueceu e eu não pude abster-me de completar) e ganhando um salário que mal daria para comprar um carro zero. Não, não. Ela tem garra. É uma vencedora.

- Margarida! – quem a chama é uma amiga de faculdade – Ta de folga hoje?

- Saí de férias, precisava descansar. – Margarida tem vergonha da verdade.

- Você não falou nada. Por que não deixou pra sair de férias junto com as da faculdade?

- Eu estava muito cansada. São responsabilidades demais.

- Deixa eu ir que fui chamada para uma entrevista e não posso me atrasar. Beijinho.

Margarida olha a amiga esbaforida e tenta adivinhar quem está contratando no momento. A amiga é uma perdedora. Está desempregada há anos, não vai conseguir o emprego. Se ela tivesse a oportunidade seria contratada. Mas Deus (Ele de novo) é justo e algo grandioso está reservado para o seu futuro. Pensa nos planos que terá de adiar: sua lipo, sua casa em um condomínio fechado, suas compras no exterior. Sorri. Nada a fará desistir de seus sonhos.

E por aí vai Margarida. Confiante de seu sucesso, inconsciente de sua exclusão e alienação. Talvez um dia perceba onde está talvez nunca se conscientize da situação. O seu futuro profissional é incerto como o de milhões de pessoas. Sua vida é imprevisível como a do Planeta.

Está livre, porém, ao contrário do rouxinol chinês, o que ela busca é uma nova gaiola. Um porto-seguro que sirva como base para as suas mesquinhas aspirações.

* Incluído no livro "Desconstrução".

5 comentários:

João Feliciano disse...

Talvez Margarida mereça ser palco de uma revolução, como X em "organismo"...
Abraço Leandro.

Anônimo disse...

Ai Leandro..que pobre coitada..alienada sim,mas deu dó. Quem não levou um pé na bunda do patrão no ápice das dívidas, que atire a primeira pedra..ou a primeira churrasqueira grill "George Foreman" que a gente compra pela TV, em 24x, achando que jamais ficará desempregado..

mas a dita "alienação da personagem", suas preocupações tão atuais e honestas(porque não)e a consciência de que para a banda medíocre da sociedade, quem não tem emprego não é ninguém,(como vc mesmo escreveu" desempregado não tem direito a festa de aniversário" ..o que para alguns..é mesmo um atrevimento)tem lá sua razão de ser..ela não passa de uma vítima das novas corporações e das palestras de Roberto Shinyashiki...ora bolas!

Já a sensibilidade aos ideais rasteiros de sucesso e status, suas esdrúxulas ambições e linha de pensamento raso, me deixaram inquieta. Só um escritor desprendido, amante da observação quase paranormal,e dono de seu silêncio, para perceber o íntimo, com tantos detalhes, desses desconhecidos workaholics que cheiram a Channel, nos olham de cima e não sabem como é bom..um belo pão com mortadela!

Adorei o texto e a "construção" de Margarida.


Bejimm

Unknown disse...

depois do rolando, a margarida.

margarida "rolando" abaixo a ladeira do capitalismo -e ela pensa que est� subindo!

abaixo o capitalismo!

liberdade -a verdadeira, que n�o se encontra em vitrines de x�pins nem prateleiras de hipermercados- para os rolandos e margaridas, que ainda h�o ser rouxin�is a voar das gaiolas para a vida.

d�-lhe, leandr�o!
brasa neles!

bjs,
olavo

Walmir disse...

pois não é que existem muitas Margaridas? e Margaridos então? Essa gente que acredita sem fim, Cândidos e Polianas.
Há um educandário infinito de gente assim.

Unknown disse...

Nada acontece por acaso, não é mesmo? Se não tomar como prova o sofrimento atual, não se aprende nada.
O orgulho, veda os nosso olhos. Existem muitas "margaridas".
Um texto muito bem escrito, e a mensagem melhor ainda.
Bjuuu