O homem passou sozinho. Eu nunca soube seu nome e nem sua história. Tudo que sei é que os seus cabelos são brancos, não me perguntem por quais caminhos eles embranqueceram, há mais de dez anos e que todas as tardes ele passeava com a filha.
O homem e a menina passeavam juntos todas as tardes. Um oásis de amor nos tempos da glacial corrida neoliberal. Quando a menina estava uniformizada, o homem carregava sua mochila e ouvia com atenção suas estórias colegiais, de vez em quando opinava sobre algo, mas na maioria das vezes a palavra estava com a filha. Durante a noite, provavelmente, faziam lições, nas quais o pai ensinava e aprendia com a criança.
Nos dias chuvosos, dividiam o mesmo guarda-chuva, depois ela apareceu com um, menor e mais colorido que o do pai ; nas tardes ensolaradas tomavam sorvete ou um refrigerante na padaria. Quase sempre o refrigerante era o mais barato, desses que alguns classificam de refrigereco, mas para a menina não fazia diferença, mais importante que qualquer marca era a companhia do pai. Nas tardes de outono e primavera, os dois podiam ser vistos comprando sonhos do vendedor ambulante (Ah! Os carrinhos de sonho! Suas buzinas, seus vendedores. Até quando irão resistir ao domínio das corporações?). A menina saboreava e se lambuzava de açúcar e creme enquanto o pai trocava algumas palavras com o vendedor – o resultado do futebol, a beleza da tarde, o aroma dos doces ou coisas do tipo – e depois voltavam aos seus assuntos, suas observações sobre o bairro, as flores (Perdoem-me a inverossimilhança, mas no bairro, ainda havia algumas casas com jardins e flores naquele tempo), a vida dos animais e os acontecimentos da aula.
E agora, o homem passa sozinho. Onde estará a filha? É isso que me inquieta. O homem passou sozinho e se eu não o tivesse visto talvez eles ficassem guardados em um canto da minha memória e o meu consciente julgá-los-ia esquecidos. Mas, eu o vi. E sozinho.
Será que a menina hoje amamenta uma outra menina que caminhará com ela pelas tardes ensinando-lhe a vida do mesmo jeito que ela um dia ensinou ao pai de cabelos brancos? Será que está numa maternidade esperando apenas o pai chegar para dar a luz a um menino com o nome do avô?
Quem vê o homem passar não enxerga as esperanças e satisfações que ele carrega.
Ou terá a filha engravidado contra a vontade paterna e ele ao encontrar um conhecido em qualquer esquina maldirá a filha, esquecendo-se de toda a ternura daquelas tardes? Ou será a filha, que tendo crescido por caminhos contraditórios, hoje maldiz o pai? Talvez estejam brigados e o pequeno motivo (uma vaga na garagem, uma festa fora de hora ou uma palavra mal colocada) tem, hoje, mais peso que a lembrança dos dias de sonhos e lições. Talvez ela em casa cuide da mãe, sempre doente, enquanto o pai corre à farmácia em busca do mesmo medicamento que há anos mantém viva a trindade.
Quem vê o homem passando não enxerga o destino que o contorna.
Talvez o homem caminhe enquanto a filha amarga a falta de oportunidade nas filas de emprego ou, quem sabe, esteja recebendo uma promoção no emprego que o pai conseguiu pra ela pela indicação de um velho amigo. Estará a jovem moça a alguns anos de revolucionar as artes, a engenharia genética, a arquitetura ou a geopolítica com idéias que nasceram das inocentes conversas dos passeios vespertinos com o pai? Ou, esquecida dos sonhos da infância, desperdiça sua beleza e ternura, se esbaldando na artificialidade dos supérfluos globais? Ou será que, cansada da falta de oportunidades e sem enxergar uma perspectiva socialmente digna, decidiu emigrar e tudo que o velho pai tem como companhia são cartas (provavelmente, e-mails) em que ela reafirma o seu amor e jura que volta assim que o pé-de-meia garantir o futuro? Ou terá sido vítima da violência urbana e hoje more só no pensamento ou então no firmamento ("pode ser a Estrela D'Alva que daqui se olha") e assim todas as tardes têm para o homem o cheiro de uma vida que passou?
Quem vê o homem passando não enxerga as saudades que ele cultiva.
Tudo pode ter corrido simples e a moça está na mesma casa dormindo na mesma cama e só não veio com o pai porque preferiu ficar na sua janela virtual esperando um príncipe que tecle para ela. Pode ser que apaixonada passeie de mãos dadas com um rapaz de cabelos negros com quem divide sonhos e compartilha seu entardecer. Os dois namorados caminham, ternos como a simplicidade que exalam, e ela conta-lhe coisas da sua vida, segredos que seu pai não alcançou e delírios que são só deles dois.
E quem vê a mulher passando não enxerga a menina que um dia ela foi.
quarta-feira, 30 de janeiro de 2008
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6 comentários:
Aiai Leandro....
minha ferida velha latejou com esse texto.
Sabe quando as palavras somem?
Pois é.
Perfeito. Perfeito. O escritor é um médium mesmo.
Parabéns e obrigada por falar sobre alguns laços que envelhecem,mas não se rompem.
Esse vou imprimir ok?
Bjimm
Leandro,
Primeiro, é você quem escreveu esse texto???
Simplesmente amei!!!!
Um beijo
Luciana Alongi
Le
este texto me levou "catarsicamente" (se é que o termo existe)á lembrança de eu menina e meu avô materno.
Lembro-me de sua mão na minha me levando à banca de revista, me incitando a curiosidade da leitura antes mesmo de eu saber ler.Dele herdei o dom literário da escrita e o senso de humor meio sarcástico.
Lágrimas me vieram aos olhos...
Bel
Bom, muito bom.
Nesse nosso mundo corrido e materialista você soube explorar aquilo que não se compra em supermercado: a alma.
Como sempre, mandando bem e permitindo uma levitação de inúmeras questões a serem pensadas. Mas o que mais importa mesmo, e o que eu mais gostei é do lema "quem ver passar não sabe". Cara, isso é o mais importante. Em tempos em que as pessoas pensam quem "conhecem" as outras pq vêem o BBB, ou que "vivem" amores, brigas e etc através dos filmes enlatados... ah, bróder, quem vê passa nunca vê nada!
abração, irmão!
p.s.:e valeu a propaganda do blog... devo atualizar hoje até..
Lindo conto Leandro.
Post adorável com a reflexão humana caminhando junto à realidade das vidas simples.
Só sinto falta de que vc descreva mais seus personagens. Assim dará oportunidade ao leitor de seguir a história de dentro deles. Não é imposição, são manias minhas.
Paz e bom humor, mano blogueiro.
Walmir
http://walmir.carvalho.zip.net
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