sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

CAMINHOS

Todos os dias havia debate na senzala.

Reunidos na mesa do jantar - ruim e insuficiente, como diria Graciliano Ramos – os escravos discutiam suas vidas, seus planos, suas funções e, principalmente, o futuro.

Toninho era sempre o mais apaixonado em suas teses. Sempre eloqüente e esperançoso, seus olhos brilhavam quando defendia seus princípios. Ele realmente acreditava no que sonhava. Mas, para a maioria dos seus companheiros de senzala, não passava de um maluco, de um baderneiro com sérios problemas de caráter. Ele queria a liberdade.

- Será que você não percebe que isso é uma loucura, rapaz? – dizia-lhe Neto, um senhor de respeito, antigo na labuta e respeitado por todos – Esse papo de liberdade é muito bonito na teoria, mas na prática não funciona. Se fosse realmente possível, Palmares não teria sido destruída...

- Palmares caiu por uma série de fatores e nenhum deles aponta para a inviabilidade da liberdade...

- Não? Você precisa informar-se mais. Sonhar é muito bonito, eu concordo, mas o trabalho é que dignifica o homem. Nós precisamos de alguém que nos direcione, o problema de Palmares foi exatamente esse, não haviam pessoas esclarecidas para governar...

- Esclarecidos para o senhor são esses vagabundos que escravizam a gente?

- Olha o respeito, rapaz. Como é que você pode chamar nossos senhores de vagabundos? Chega a ser até ingrato da sua parte...

- Ingrato? E por que eu deveria ser grato a quem vive do luxo proporcionado pelo meu suor e em troca me devolve esta vida de merda?

- Você devia era levantar as mãos para o céu e agradecer a Deus: você tem comida na mesa, tem saúde e tem um teto. Você já parou pra pensar em quantas pessoas gostariam de estar no seu lugar? Ter a oportunidade que você tem?

- Oportunidade?!?!? De que? De enriquecer ainda mais quem sempre foi rico? De esperar os minutos de folga para fazer o que eu realmente gosto? Oportunidade de estragar a minha saúde enriquecendo essas sanguessugas?

Enquanto Neto e Toninho, ou Antonio de Ogum, discutiam, os demais escravos acompanhavam com atenção e pensavam em suas vidas. No fundo, lá no escaninho da alma, todos concordavam com Toninho. Porém, os argumentos de Neto pareciam-lhes mais sensatos, sobretudo porque enquanto um era um jovem sonhador o outro era um senhor experiente. Além do mais, já estava provado que a liberdade era para quem tinha capacidade de gestão, o que não era o caso deles.

Toninho, na verdade, pouco se importava com a desaprovação dos outros, sabia que os recursos que dispunham para livrar-se da lavagem cerebral que receberam eram escassos e enquanto a subserviência de Neto fosse tomada como exemplo, as coisas permaneceriam como estavam.

- Escute o que eu vou te dizer, garoto. Eu tenho idade quase de ser seu avô, aliás fui muito amigo dele, e me sinto na obrigação de te aconselhar: esse papo de igualdade não existe. É desculpa de vagabundo que não quer pegar no batente. E te digo mais: agradeço todos os dias da minha vida por trabalhar para um senhor que raramente nos chicoteia, e quando o faz é porque o merecemos, e tudo o que eu tenho hoje na minha vida eu devo a ele.

- E o que o senhor tem na vida? – Toninho não conseguia esconder o desprezo que sentia pelo comodismo e ignorância do respeitado conselheiro.

- Tenho respeito, uma estória linda e, dentro em breve, terei direito a um merecido descanso. Aposentar-me-ei como chefe. E sabe por quê? Porque eu lutei pra isso. Porque ao invés de sonhar eu construí minha vida.

- E foi isso que o senhor sempre quis? Quando olhava para sua velhice, era essa bela estória que sonhava construir? Não acredito.

- As besteiras da mocidade morrem com a mocidade.

- Será que a sua vida é tão desprezível que valeu a pena trocá-la por essas porcarias que o senhor julga imprescindível?

- Chega! Já falou besteira demais. – Branco e Gegê interferiram no debate enquanto Neto, com um sinal de desdém, desaprovava o comportamento de Toninho.

- A vida vai ensiná-lo. – profetizava o respeitável trabalhador.

A cada dia a situação dos escravos tornava-se mais sacrificantes. Apoiados pelos governantes, os senhores cada vez davam menos direitos aos pobres trabalhadores, além de exigirem cada vez mais dedicação. As obrigações aumentavam na mesma proporção que os direitos eram suprimidos.

Cada direito suprimido dava origem a um novo debate e paradoxalmente quanto mais eram explorados mais os trabalhadores tomavam partido do senhor.

Incomodado com as conversas abordadas por Toninho durante as refeições, Neto sugeriu aos administradores uma forma de acabar com os debates. Um mês depois, uma televisão foi instalada na senzala. O aparelho foi recebido com festa, Neto fez um discurso exaltando a benevolência dos diretores em proporcionar diversão e cultura aos trabalhadores.
Desse dia em diante, os debates foram substituídos pelos programas de auditório, novela e telejornais cujos conteúdos deixavam bem claro que qualquer sugestão de uma vida diferente daquela era um disparate.

Somente Toninho não via mais sentido em permanecer naquela situação. Desde criança nunca vira perspectiva de felicidade dentro do regime que viviam. Nunca sonhou o sonho que lhe implantavam e nem se deixou levar por congratulações e promoções. Isolado, desistiu do levante, da tomada da empresa por todos os escravos, de uma república igualitária, que tinha em mente e decidiu sair dali sozinho.

- A gente ainda não sonhou. A vida não é só isso. Nós estamos entregando nossas vidas aos interesses alheios. Eles dependem de tudo isso, nós não... Os escravos são eles e nós sustentamos com os nossos desejos a liberdade deles. Pra mim chega! Como disse meu mestre Rousseau, é preciso ter olhos pra ver e coração pra sentir. – falou o rapaz a alguns amigos poucos minutos antes de demitir-se – O que faz o forte é o medo do fraco. Eu quero ser feliz e para isso é necessário que eu seja livre. A liberdade precede a felicidade, até isso eles subverteram. E nem isso, vocês percebem. – falou o rapaz aos companheiros de cruz na última noite que passou na senzala.

Depois dessa noite Toninho nunca mais foi visto. Neto foi promovido e tratou de redobrar a vigilância e impedir que o nome de Toninho fosse proferido pelos amigos. Patrocinado pela direção, organizou palestras de motivação e exibiu documentários que mostravam o contraste da verdadeira liberdade que eles tinham naquela senzala em comparação a repressão e a miséria dos quilombos.

A liberdade até hoje não chegou àquela senzala, se bem que todos acreditam viver no modelo mais liberal do planeta. Muitos dos que ouviram o debate ainda repetem confiantes as palavras do velho Neto outros se arrependem de não terem saído com Toninho, de temerem não haver felicidade fora da escravidão e do sonho de se tornar senhor.

Neto morreu alguns anos depois de uma doença causada pelo trabalho. No enterro, muitos amigos comentaram a sabedoria e a vida correta do respeitável chefe. Os patrões não foram despedir-se, no entanto mandaram uma linda coroa de flores com um emocionante cartão que realçava a importância da obstinação e da perseverança daquela personalidade única.

Quanto a Toninho, as notícias que chegaram dele na senzala nunca foram comprovadas. Ninguém sabe ao certo como foi sua vida fora da senzala. A informação oficial, transmitida pelos meios de comunicação e palestrantes é de que ele morreu de fome nas imediações da senzala.

Alguns afirmam que ele foi morto traiçoeiramente pelas tropas dos empresários (perdão, do governo) enquanto pregava a liberdade (e a igualdade) em outras senzalas.

A única certeza que se tem é a de que ele nunca mais foi escravo.

O resto é silêncio.

3 comentários:

Zilmara Dahn disse...

Lindo!

Anônimo disse...

...a dose mais forte e lenta
de uma gente que ri qdo deve chorar
e não vive: apenas agüenta...

e viva a histeria cega...

liberta quae sera tamen terra brasilis

beiiijooo Le meu amigo queridaço.

Leonardo Machado disse...

Nunca mais escravo. Só isso que vc errou brother. :D Toninho nunca foi escravo. A liberdade que ele possuía era inviolável. Definitivamente a igualdade é balela, porque a liberdade é que não é para todos. Não a liberdade dos grilhões, mas a liberdade do ver. Toninho via. E os outros, nem com todos os óculos que qualquer ciência for capaz de confeccionar veria nada além da TV.
Grande abraço, bróder. Obrigado por mais essa pérola. Tem novidades no meu brógue também.