terça-feira, 7 de outubro de 2008

MILES AWAY

A noite corre suave. Brisa. Olor de plantas que ainda respiram (Deus as proteja!). Miles Davis toca “Autumn leaves”. Um homem conversa com o porteiro do prédio. Uma estrela nos observa “escribiendo em el cielo sus estrofas de plata”...

A música me envolve. Meio século depois, os acordes do bruxo ecoam na sala da minha casa. Tecnologia: eis o grande milagre do século XX. A unidade do tempo. A beleza eternizada. Popularizada. O som do trompete penetra nos meus poros. No mesmo segundo, Santos vira o Harlem do jazz dos anos 40 e volta a ser Santos. O passado e o presente de mãos dadas. Relatividade. “Autumn Leaves”. Miles, Cannonball, Hank, Sam e Art tocam para mim. A harmonia traz perfume ao ambiente. As plantas aplaudem. Aposso-me do som como do brilho da estrela. Nessa noite eles são meus e são exatamente essas maravilhas (que eu tenho, mas não contenho) que tornam a noite bela.

Na portaria, os homens continuam conversando. O morador fala alto com o porteiro, gesticula, mostra-lhe a revista (fonte de todas as suas convicções) e palestra sobre as mazelas do mundo. Suas frases são maniqueístas, seu entendimento é concebido de fora para dentro. Para ele um subalterno social é também subalterno intelectual. O porteiro escuta distraído. É um alvo fixo, não pode abandonar o posto. Uma presa fácil para monólogos. Sua mente não está ali (só o pretenso palestrista, mais preocupado com suas bravatas e certezas não percebe), está, talvez, procurando uma forma de se libertar, de encontrar um emprego onde suas noites sejam noites, seus domingos, domingos; ou quem sabe está do outro lado da cidade, aonde numa virada cultural um “guitarreiro batuca sua guitarra como se fosse o tambor do terreiro”.

Virada Cultural. O samba-rock. O Brasil e os E.U.A. O clube do balanço. A América que a África pariu. Pixinguinha e Robert Johnson. Little Richard e Jorge Ben. Assim como não admito Santos somente como uma porta de entrada e saída de lucros e nem tampouco o Brasil como um simples celeiro de matérias-primas, não vejo mais os E.U.A. apenas como a truculência de sua geopolítica nem como a infantilidade de seu “way of life” e de suas propagandas; é também -e sobretudo- a desobediência de Thoureau, a estrada de Kerouac, as mutações de Beck, a Lucille de B.B.King, a geração de Hemingway, o sinal de Prince, a guerra de Welles, a batalha de La Rocha e Morello, a rebeldia de Marlon e o amor de Dian.

A estrela continua nos observando inconsciente (?) de seu brilho intenso. Brilha para mim e para alguém que a observa em Illinóis. Como Miles Davis, talvez não esteja mais ali fisicamente. Seja apenas uma miragem. Uma vida além da vida. Uma luz superior à matéria. Ou um milagre tecnológico da natureza. Na sala, “Yesterdays” também brilha. Lembro-me de Billie Holiday cantando-a. Billie Holiday morta na sarjeta. Será que algum dia ela teve consciência de seu enorme valor? Cartola lavando carros na praia de Botafogo. ”El poeta es el médium de la natureleza”. Garcia Lorca assassinado com um tiro na nuca. A lei da bala. Farofa Carioca. Penso na virada cultural, nos estivadores do porto e no mundo globalizado. A liberdade e seus subterrâneos. Haverá lugar para a arte no mundo prático da não-utopia? Miles me diz que sim. Miles e seu trompete vermelho. Sua liberdade. Seus azuis. Azul de Madre Teresa e Iemanjá. De Renoir e Gershwin. Azul da geração de crianças índigo. Sim. A arte é parte do ser-humano mesmo que ele não a saiba. Enquanto houver sentimento haverá arte. Haverá vida. Vida e virada. Haverá utopia.

O morador, cheio de ódio e mídia, se despede do porteiro acenando com a revista. A noite para ele está péssima e o dia vindouro é preocupante. Sofre. O mundo não consegue apresentar-lhe mais nenhuma beleza. É ao mesmo tempo algoz e vítima.
O porteiro não se lembra mais de nada do que foi conversado. A única parte da conversa que o agradou foi sobre o jogo de seu time. Zero a zero. Irá esperar o dia nascer para voltar a viver.

É por volta da meia-noite. Miles toca “Vênus de Milo”. Toca para a deusa do amor, para a Grécia antiga e seus artistas. Toca para a estátua que perdeu seus pés e braços sem perder a beleza. Toca para a estrela. Para si mesmo. Para o universo. Despeço-me da noite e do som satisfeito por saber que em Alton ou em Santos, em Varsóvia ou em Luanda, um garoto, apesar do mundo que está montado ao seu redor, descobre na beleza da arte - como no “Clube da luta” às avessas - um modo de tornar luminosa a sua existência e mais leve a vida de quem o encontra.

Boa noite Miles Davis. “Bye bye blackbird”. Boa noite.

6 comentários:

Anônimo disse...

E nesse dia de sol lindo por aqui...Me alegra a alma, sentir a leveza e as descobertas das tuas palavras...


E o livro já saiu???...Não tive mais noticias


Até!

Leonardo Machado disse...

Obrigado, brother. Na moral.
Eu estava quase como o porteiro... "no automático". Esperando umas coisas passarem pra "recomeçar" a viver. Outra hora eu posso até fazer comentários mais "profundos" se vc quiser. Por agora vou deixar o melhor elogio que posso: " isto meu deu muito o que pensar. "
Um abraço, Freeloader.

Walmir disse...

Mano blogueiro, muito bom seu post.Gostei daquela imagem do porteiro impotente ante os mon'ologos dos que lhe sao superiores. Me deu ideia de trabalhar uma peca assim. Do ponto de vista dramatico eh uma ideia instigante. Tou pensando em me aproveitar dela. Mas se acontecer credito o argumento a voc.
Paz e bom humor, mano

dulixo disse...

Salve meu amigo mais antigo...rsrs...muito bom esse texto..tomei a liberdade de enviar para uma rapa de SP que trampa com literatura..logo mais vamos marcar de subir e conhecer o sarau...forte abraço..e boas escritas.

Tubarão - www.dulixo13.blogspot.com

Os espelhos são usados para ver o rosto; a arte para ver a alma. George Bernard Shaw

Zilmara Dahn disse...

Mas você não sabe mesmo escrever sentenças simples.Esconde sempre um teremoto no meio dos textos. Fico imaginando qual foi a primeira frase que disse a sua mãe quando começou a falar...
"guarde minha chupeta mamãe,é nela que repouso e me abstraio."

teria sido isso?

Anônimo disse...

perfeito Leandro,teve até crianças índigo e claro "aquela revista"