quinta-feira, 10 de maio de 2007

LIBERTAÇÃO

O tema escolhido para o texto de hoje era a visita do Cardeal Ratzinger, atualmente conhecido como Papa Bento XVI, à América Latina e a conclusão de que a Teologia da Libertação, que ele denominou de uma "heresia singular," pode fazer muito mais pelo nosso povo que as pílulas de Frei Galvão. Mas como este é mais um assunto espinhoso e normalmente as discussões que envolvem religião são cegas e surdas, deixemo-as em silêncio e tratemos de um assunto mais agradável: Heitor Villa-Lobos.
Villa-Lobos é há muito considerado o maior músico das Américas. Para Ratzinger a arte é uma forma de manifestação do sagrado. Nesse ponto os dois combinavam. O maestro acreditava que a arte era a salvação para os problemas do Brasil e do mundo. E talvez não estivesse errado. Villa-Lobos conhecia o Brasil, sabia muito bem quais eram as nossas deficiências e fez o que estava o seu alcance para ajudar. Estudou a fundo o nosso folclore e uniu-o à erudição, por muitas vezes religiosa, de Bach. Foi o maestro que regeu um coral de quarenta mil vozes (no tempo em que os corais eram de vozes e não de mãozinhas para o alto e pezinhos saindo do chão) no Estádio de São Januário e lutou para que as escolas não mais negligenciassem as artes.
Seu Brasil não tinha nada a ver com o Brasil dos shoppings centers e franquias de lanchonetes americanas. Seu Brasil era o dos pajés, das cirandas, dos pássaros e dos trens. O Brasil da Semana da Arte Moderna, de Manuel Bandeira. Hoje é comum encontrarmos cronistas musicais e até “professores” de música que nunca tiveram um contato com a sua obra. Mas isso não importa. O que importa é que o que temos de beleza em matéria de música, de Hermeto Paschoal à Lenine, de Tom Jobim à Uakti, foi Villa-Lobos, com sua ousadia, sua genialidade e amor à arte, quem pariu. E suas melodias ecoam em nosso subconsciente, em nossas matas, nossos rios. A sua obra representa grande parte da nossa identidade.
Talvez, o Brasil não estivesse preparado para ser o país de Villa-Lobos. Mas, seus choros e suas bachianas foram decisivos para nacionalizar nossa música. Uma verdadeira antropofagia nacionalista, que se emocionou com Stravinsky sem esquecer Ernesto Nazareth, que se fascinou com o canto do Uirapuru (haverá no Planeta som mais belo?) sem deixar de lado as valsas vienenses, uma miscigenação de erudição e folclore. A busca do divino pela arte que traria nossa tão sonhada liberdade. Um santo cujas pílulas são células melódicas e seus milagres são os que nos levam a descobrirmo-nos como povo integrante do mundo e com condições de assumirmos uma identidade. Não foi à toa que Glauber Rocha, no seu objetivo de criar um cinema verdadeiramente brasileiro, usou Villa-Lobos, de quem era fã, como trilha para o seu lendário “Deus e o Diabo na terra do Sol” e “Melodia Sentimental” foi escolhida pelo cineasta Cacá Diegues para encerrar o filme intitulado “Deus é brasileiro”, um filme que tem Deus humanizado na figura de Antonio Fagundes, o mesmo ator que personificou Heitor Villa-Lobos nas telas.
Se o Brasil de hoje é pior que o da época em que o maestro estava encarnado entre nós, ele sempre trabalhou para melhorá-lo. Se hoje as pessoas estão pouco se importando com uma identidade cultural, a sua luta sempre foi pelo contrário. Mas a sua obra estará sempre à disposição, sempre pronta para nos mostrar o Brasil que merece ser amado e respeitado e apontar, através da arte, uma saída para a nossa miséria intelecto-social.
Por isso, no momento em que uma canonização é comemorada como um reconhecimento de nossas potencialidades, nada melhor que encontrarmos a redenção em Villa-Lobos, o nosso salvador.

* Publicado também no jornal Página Dois ( http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=3390)