quarta-feira, 30 de maio de 2007

LONELY HEARTS

Semana passada, recebi o telefonema de um amigo me pedindo sugestões para um programa comemorativo aos quarenta anos de lançamento do LP “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band” dos The Beatles. Pensando sobre o assunto, me lembrei que além de Sgt.Peppers, o livro “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Márquez e a peça “Navalha na carne” do meu conterrâneo Plínio Marcos também comemoram quarenta anos de lançamento no ano presente.

Que a década de 60 foi uma década importante em termos de produção artística não é segredo para ninguém. Seria necessário bem mais de uma lauda para listarmos todas as grandes obras produzidas somente no ano de 1967. Mas o nosso intuito não é falar da década de 60 e nem render homenagem aos artistas que criavam no período. O nosso foco é o presente. O ano de 2007. A primeira década do século XXI.

Longe do discurso pessimista, e muitas vezes mal intencionado, de que a criação artística de nosso século é irrelevante, hoje existem obras de arte tão criativas e importantes para as gerações futuras quanto as que existiram no passado. A diferença é o interesse do público e a atenção dos veículos de informação. Vivemos na década do consumo. Da produção em massa. Portanto, é necessário que essas obras não existam, ou pareçam não existir.

O neoliberalismo, assim como todo sistema que se impôs, criou pessoas diferentes. Vivemos na década do mercado, onde tudo, inclusive as pessoas tem valor comercial. O sujeito crítico de Kant deu lugar às celebridades vazias e consumidores ávidos pela valorização que determinado consumo pode significar no seu valor de mercado. A Babel de apelos à atenção, descrita há mais de cem anos por João do Rio, cresceu, multiplicou-se e é a marca de nosso tempo. Diferentes do Aquiles de Homero, os nossos candidatos a heróis não têm nenhuma preocupação com suas imagens perante as gerações futuras e nem o intuito de realizar nada de grandioso, querem apenas desfrutar do consumo que a fama lhes trará. E com isso, ganham a identificação de um público que enxerga neles suas próprias aspirações vazias.

Diante de uma cultura criada no culto à falta de atenção, na constante negação ao aprendizado e descaso com a história só resta às mentes vazias de opiniões e apuro intelectual, o consumo desenfreado. Consumir o sexo. Consumir o turismo. Consumir o consumo. Nada a pensar, tudo a consumir.

Nos dias de hoje o sonho de qualquer rapaz que monta uma banda de rock, ou de qualquer outro estilo, é ficar famoso e ver seu clip na parada de sucesso da franquia brasileira da emissora americana. Para isso seguem a risca as regras do mercado. Até a ousadia tem seu lucro programado. Nada é lançado sem a certeza do lucro. E se o The Beatles no seu início também tinha preocupações mercadológicas, não foi por falta de arriscarem que eles não perderam o destaque obtido na fase iê-iê-iê.

Na contra-mão do mercado multinacional de produção cultural(?) temos uma facilidade maior de produção, lançamento e divulgação independente. Uma democratização da produção artística paralela ao monopólio do lucro. Nossos Van Goghs continuam criando sem a atenção do grande público, que interessado em um lugar maior na ciranda do consumo engole, de qualquer jeito, qualquer coisa que a mídia mercadológica empurre “goela abaixo”.

Enquanto o mundo se esvai em tempestades e tufões, enquanto as abelhas vão desaparecendo (para o desespero de Einstein), as pessoas vão entulhando seus I-Pods com cada vez mais lixo, ingerindo cada vez mais química, consumindo de tudo e ao mesmo tempo. Um grande ruído toma conta do nosso mundo. Do nosso tempo. Os gritos por atenção são tantos e tão altos que formam um uníssono tão vazio e sem sentido quanto os apelos individuais. A produção em massa obriga ao consumo rápido, que obriga o lucro imediato e como “ quem pensa, pensa melhor parado” (saudades de Raul Seixas!) não há mais tempo para as reflexões. É preciso correr. Correr para lucrar. Lucrar para consumir. Quem pode, pode; e quem não pode, mas deseja da mesma forma, busca meios para poder. E cria-se o caos da violência, do desrespeito à vida, da solidão individualista. Sem tempo para análise se aceita sem questionamento as conclusões deturpadas da mídia mercadológica e vive-se sem a mínima noção de quando, onde e como. A corrida pelo consumo não pode parar, assim como não pára a produção. Ainda assim, o ócio, essencial para a criação artística, resiste. E é lá, nos redutos do ócio, longe das verdades inventadas e das mentes esvaziadas pelo mercado, que a arte vai procurar seus renovadores.


Se hoje a grande mídia divulgadora do mercado ainda se preocupa em comemorar os quarenta anos de “Sgt.Peppers” é, com certeza, mais pelo fenômeno de vendas que os The Beatles significaram que pela ousadia de concepção e viagens psicodélicas da obra.Se as pessoas ainda procuram “Cem anos de solidão” é mais pelo Prêmio Nobel que conquistou que pelo interesse nos Buendias de Garcia Márquez. O valor de mercado engoliu o valor moral.

O Picasso dos nossos tempos é um automóvel. É até interessante imaginar como seria a vida genial pintor espanhol, autor da tela “Guernica” pintada há exatamente setenta anos, como um jovem dos dias de hoje. Talvez, como muitos, teria a aparência de um carro; Provavelmente, jamais pintasse “Les mademoiselles d’Avignon”. Ou, (quem sabe?) mantivesse a pintura como hobbie enquanto ganhasse a vida como funcionário de uma montadora de automóveis.

Parabéns ao “Sgt.Peppers” e à “Guernica”! Parabéns ao “Terra em Transe” (40 anos), ao “As Flores do Mal”(150 anos), ao “Museu de Arte Contemporânea de Niterói”(11 anos) e àquela obra de arte, que desconhecemos, concebida à margem do mercado de consumo, e que daqui a alguns anos nossos descendentes celebrarão como marco da produção artística do confuso ano de 2007

* Publicado também nos jornais: Página Dois (http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=3455) e Brasileiros e brasileiras (edição de julho/2007)

Um comentário:

Unknown disse...

Dukraks!

Excelente! A reunião -sem forçação de barra- de tantos ícones (com perdão para o uso do termo) da produção cultural planetária foi excepcional!

meus parabéns sinceros!

em tempo:
01) não sei se o programa utilizado por esse blog permite, mas é legal encaixar uma linha entre cada parágrafo, a fim de facilitar a leitura e torná-la mais palatável
02) pelo licença pra divulgar o texto "lonely hearts" e o blog

ah, o título do texto foi um achado1
viva o trabalho!

olavo dáda
corinthians, vulga santos, sp