quinta-feira, 17 de maio de 2007

MILAGRE

Sinal vermelho: pare!
Debruçado sob o volante Francisco Amparo, o Chico da Aparecida, olhava angustiado para a rua enquanto esperava a luz verde que indicaria que o ônibus que todos supunham que ele conduzisse poderia seguir. Mas, há tempos, Chico – vamos chamá-lo assim, pois assim ele prefere ser chamado- não sabia quem conduzia quem. Todo o dia quando o despertador indicava a hora dele começar a trabalhar uma melancolia tomava conta do, outrora alegre, pai de família.
Sinal verde: siga!
Chico deu a partida no ônibus e mergulhou, outra vez, no caótico trânsito da cidade, as ruas entupidas de carros guiados por motoristas mal educados que não tinham respeito por nenhum código de convivência faziam com que o motorista se sentisse em uma selva: “a lei do mais forte!”, pensava ele, sorrindo por ser o maior naquela barbárie de automóveis, motocicletas, bicicletas, motoristas e pedestres, todos desgovernados, sem o mínimo respeito pelas regras de trânsito mais elementares.
No fundo do ônibus algumas crianças cantavam em tom ameaçador. Uma mistura de alegria e violência que era comum encontrar em todas as faixas etárias de todas as camadas sociais por todo o país. Ao mesmo tempo em que se enternecia pela alegria das crianças, Chico se preocupava com o tom de agressividade, com o que aquela confusão de sentimentos poderia produzir. As crianças desceram no ponto próximo ao colégio e Chico olhando-as, torcia para que a vida livrasse-as da agressividade e acentuasse suas alegrias. Ao passar na frente do salão de beleza de Júlia, sua irmã caçula, percebeu a placa de passa-se o ponto. Julia abrira o salão havia dois anos e já estava fechando. O número de conhecidos que se aventurava no próprio negócio como a saída para uma sobrevivência digna e fechava por não conseguir arcar com as despesas era incalculável. Mas, Julia nunca entendera nada de salão de beleza. Não sabia nem pintar as próprias unhas. Como o negócio poderia dar certo?
No próximo ponto três senhoras de idade e um casal de jovens namorados faziam sinal para parar. “Meio dia e vinte”, concluiu Chico ao ver os namorados. A delicadeza do casal de estudantes o comoveu. Lembrou da delicadeza que o tempo o roubara. Sentiu saudades de estudar, de aprender, de sonhar...Saudades de quando não era máquina. O pensamento foi interrompido por uma das senhoras que reclamou a demora para destravar a roleta. Sem demonstrar nenhuma reação, Chico destravou a roleta e voltou para o desempenho de suas funções. No próximo ponto cinco pessoas faziam sinal de parada: dois aposentados mostraram a carteirinha e passaram direto, os três outros vinham com dinheiro. Chico se confundiu com os trocos, o que levou um dos passageiros a tratá-lo com desconfiança. Esse tipo de incidente já era rotineiro. Desde que a companhia decidiu que ônibus não precisava de cobrador que os motoristas desempenhavam, também, esta função, como se o desgaste causado pelo trânsito não fosse o suficiente, e nesse acúmulo de atribuições a confusão era comum. A desconfiança também. Ao invés de se irritar com o passageiro Chico lembrou de seus amigos cobradores: Nilsinho nunca mais arrumara emprego, vivia de bicos como motorista de táxis ou particular, mas parecia muito mais feliz que na época em que trabalhavam juntos; Orlando investiu o dinheiro da rescisão numa mini-papelaria no bairro em que morava; Gilmar, de vez em quando, pedia para entrar no ônibus sem pagar e descia no Centro da cidade para entregar currículos na esperança de não viver mais do salário de manicure da esposa; Valdir estava morto, vítima do mosquito da dengue e Péricles continuou trabalhando de vendedor de bilhetes nos pontos de ônibus até aquela semana, quando se cansou de ser assaltado três vezes por semana e decidiu tentar outra coisa; dos outros não teve mais notícia, mas também não tinha saudades. Na verdade lembrar deles era lembrar do trabalho. Um trabalho que ele não gostava. Que nunca gostou.
Foi Jurandir, primo de segundo grau, quem lhe sugerira aquele emprego. Chico tinha carteira de motorista profissional e decidiu aceitar. Ao fim do primeiro mês já pensava em sair. “Sossega homem!”, gritou sua esposa Clarice, “nunca vi homem pra não parar em emprego desse jeito!”; Parar no emprego! Será que era pedir demais fazer aquilo que gostasse? Será que era luxo ganhar a vida em algum trabalho que não o transformasse em máquina, não assassinasse sua alegria, seus sonhos? E pela harmonia do lar Chico decidiu continuar no emprego. Rezou muito pra São Francisco – seu santo de devoção - para ser incluído na lista de corte. O santo parece que não o julgou merecedor, ou então Santa Clara – a santa de devoção de Clarice – tinha mais força para esses assuntos. O certo é que há mais de dez anos ele estava ali: transportando, cobrando, sofrendo humilhações, sendo assaltado, fazendo horas extras e recebendo em troca um salário que mal garantiria uma vida decente. Fazer o que? Rezar não adiantava. Certa vez, desconfiado que o problema fosse de incompetência por parte do seu santo de devoção, decidiu demitir São Francisco e contratar Santo Expedito. “É o santo das causas impossíveis!”, bradava cheio de entusiasmo o jornaleiro Alberico. Depois de dois anos de súplicas não atendidas, o santo poeta voltou ao seu cargo e o soldado continuou apenas para os mais aflitos. Se não o atendia pelo menos era mais familiar. Na Praça da Fonte os mendigos continuavam se banhando e brincando com a água. “Dez para as duas”, pensou quando viu o rapaz de mochila que três vezes por semana entrava no ônibus naquele ponto para descer em frente ao clube onde ele fazia algum tipo de esporte, “deve de ser nadador” – concluía Chico pelo porte do rapaz.
Vermelho: pare.
Enquanto esperava o verde, se atentou a conversa de dois rapazes sentados próximo a ele, falavam sobre um tal de Bispo do Rosário:
- Tu acredita que ele ficou mais de cinqüenta anos em um manicômio, alheio a tudo, e lá criou com sucatas, vassouras, latas de óleo, fios de uniformes e de lençóis obras de arte de vanguarda?...
- Que maravilha!
- Sem acesso nenhum à produção artística da época, ele teve sua arte comparada à de Marcel Duchamp...
- Eu não to nem aí pra Marcel Duchamp...o que me interessa é a obra de Artur Bispo do Rosário...
“Isso é que é luxo!” pensava Chico enquanto obedecia ao sinal verde e dava a partida no ônibus, “se hospedar num manicômio com sustento garantido e só se preocupar em produzir... se fosse assim comigo eu virava um pintor de primeira...”, ponderou o motorista, talvez desconhecendo as seções de eletro-choque a que Bispo do Rosário foi submetido ou, quem sabe, preferindo-as à tortura que o ofício significava para ele; o barulho do trânsito e dos outros passageiros impediu que ele continuasse ouvindo a conversa. Queria saber mais sobre o tal Bispo do Rosário. Talvez nunca mais ouvisse falar dele. Não tinha tempo pra pesquisar e na sua folga deixava-se ficar anestesiado, sem forças pra levantar, escutando o programa da TV que falava sempre dos mesmos assuntos e das mesmas pessoas que não lhe acrescentavam nada. Os rapazes deviam ser estudados, tinham como pesquisar. Se perguntasse aos seus filhos, o máximo que eles saberiam eram as escalações das seleções brasileiras campeãs do mundo. E isso já era motivo de orgulho. Poucos no pedaço tinham esse tipo de interesse pela história do país. Chico viu os rapazes descendo no ponto próximo ao cinema e despediu-se de Bispo do Rosário. “Hoje é um belo dia para enlouquecer!”, pensou ele enquanto se lembrava da conversa sobre a vida do artista.
No ponto final o fiscal chamou a atenção pelo atraso, comunicando que houve três telefonemas para a central de atendimento reclamando que ele acelerou demais e duas reclamando que ele tentara “enrolar” na hora do troco. Tomou um café corrido e mal conseguiu fumar um cigarro inteiro, subiu de volta ao seu posto para um novo trajeto. Naquele horário as pessoas pareciam mais mal-humoradas, depois de se frustrarem nas agências bancárias ou nas entrevistas de emprego elas queriam descontar suas angústias no motorista do ônibus. Outras, apressadas para chegarem em casa, reclamavam das paradas e da demora. Logo no terceiro ponto uma senhora obesa cheia de sacolas insinuou que ele deveria ajudá-la a passar pela roleta e um senhor de idade reclamou da distância do ponto de descida para a rua que ele iria. E Chico só conseguia pensar no artista do manicômio. “Internado no meio de loucos, eu já estou...”, pensava, invejando a situação em que vivera o artista. Uma motocicleta colocou-se a sua frente quase gerando um acidente; uma senhora de idade que se dirigia ao fundo do ônibus caiu com a freada e os passageiros começaram a reclamar em uníssono da incompetência do motorista. Jair, grande amigo de Junior, seu filho do meio, entrou no ônibus e respondeu friamente ao seu cumprimento. Chico não levou como ofensa. Era comum as pessoas não o reconhecerem ali, o motorista era parte do ônibus e não a pessoa que eles conheciam, portanto olhavam para ele com a mesma atenção com que olhavam para o volante, para o câmbio ou qualquer outra peça. Quando avistou o ponto do centro mais de dez pessoas faziam fila para entrar e não havia nenhum vendedor de bilhetes no ponto. Chico parou o ônibus e olhou firme para ele mesmo, para sua vida. Insatisfeito, pobre, inculto, mal amado, mecanizado e sem nenhuma perspectiva de melhora. “Pare!”. Levantou-se do posto e antes que o primeiro passageiro subisse desceu correndo do veículo, enquanto os passageiros atônitos não sabiam o que fazer com as suas pressas e nem o que pensar sobre o homem.
Chico corria pelo centro da cidade, livrando-se do uniforme de motorista, jogando pelo chão todo inferno que aquela rotina significava pra ele. Descera do ônibus atendendo ao chamado de Francisco, o de Assis, que o esperava do lado de fora, inteiramente nu acompanhado de um senhor que vestia um manto todo bordado.
- Eu sabia que o senhor não iria me deixar na mão..., disse o da Aparecida ao de Assis enquanto os três caminhavam rumo à vida por entre árvores e pássaros que sempre passaram despercebidos pelo motorista angustiado e desgastado - ...o senhor trouxe esperança ao meu desespero, alegria à minha tristeza, luz às minhas trevas...
Humanizado, o homem exibia um sorriso largo, sentia-se livre. Senti-se vivo. Enlouquecera como Van Gogh, como Lima Barreto e como o agora seu companheiro Bispo do Rosário, o homem que transformou em obras de arte tudo aquilo que a sociedade jogou na lata do lixo. Acompanhado pelos dois amigos sentia como se sua vida começasse naquele momento. Como se a contagem do mundo tivesse recomeçado como previra Bispo do Rosário alguns anos antes. O amor à vida tomou conta dele e ele jurou nunca mais agredi-la, negligenciando-a em troca de sofrimentos e realizações que ele nunca almejou de verdade.
Francisco, o da Aparecida, foi visto em uma exposição de arte chorando em frente ao quadro “D.Quixote e Sancho Pança” de Portinari, nadando no mar, construindo castelos de areia, conversando com pássaros, aplaudindo um coral de crianças estudantes de música e falando pelas ruas:
- ...Bem aventurados os que sustentam a paz, Que por ti, Altíssimo, serão coroados...
A última vez que o viram, antes da cidade inteira ouvir os gritos de prazer de Clarice e uma chuva de rosas cair sobre o seu quintal anunciando o jardim que se instalaria ali no final daquela semana, foi no bar vizinho da faculdade de comunicação, cantando e gargalhando para os estudantes uma música do compositor Joubert de Carvalho, um clássico do cancioneiro nacional, com a letra adaptada para sua própria vida:
- Eu me vingo deles tocando viola de papo pro ar...
Não se sabe se pelo abandono de emprego Francisco do Amparo não recebeu os seus direitos trabalhistas ou se algum juiz decidiu julgar seu ato como um desvario causado pelo desgaste da função e ele foi afastado e indenizado. Tampouco se tem notícia dos pequenos transtornos causados aos passageiros do ônibus que ele abandonou. Mas, isso pouco importa saber. O que importa é que toda a semana ele expõe seus modestos quadros em praça pública e fabrica, através de sucatas, brinquedos que divertem seus netos e amigos com a mesma eficiência que os industrializados divertem as crianças de condomínios. Quando não está expondo, pode ser encontrado na biblioteca pública ou nos bancos de praças conversando com amigos ou buscando inspiração na natureza. Quem tiver dúvida quanto a sua situação pode se certificar através da felicidade retratada nas telas e do sorriso no olhar do pintor.

* Incluído no livro "Desconstrução" e publicado também no jornal Página Dois (http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=3410)