quinta-feira, 28 de junho de 2007

FORA DA ORDEM

A violência é o produto mais consumido no nosso tempo.
O ser - humano mais do que qualquer outro animal sempre cultivou a violência. Basta recordarmos o sangrento circo romano, as fogueiras inquisitórias e as guerras e extermínios que marcaram nossa história. O que acontece de peculiar nos “anos do consumismo” é que mesmo com todos os avanços da ciência e da tecnologia e os exemplos históricos de que a agressão é o caminho menos eficiente para se atingir qualquer objetivo, a violência continua sendo consumida avidamente.

É impossível circular pelas ruas, ou buscar informações seja lá por qual meio, e não perceber que o “culto à violência” invadiu o inconsciente coletivo do nosso planeta. A violência pop, muito pior que em qualquer filme de Quentin Tarantino, está tanto na pauta de assuntos e nas caras de malvados de nossos adolescentes como nas terríveis tragédias que ilustram nossos noticiários.
Se o culto à beleza povoou as obras e estudos dos renascentistas humanistas dos séculos XV e XVI e o iluminismo do século XVIII inspirou a filosofia do culto à inteligência, é a violência que inspira a arte, a moda e as relações sociais e sexuais do nosso tempo.

Ela não está somente nos jovens de classe média carioca que espancam uma doméstica no ponto de ônibus, nas chacinas, que de tempo em tempo apavoram a população norte-americana, nas lembranças de Hiroshima, nos conflitos intermináveis da faixa de Gaza ou nas guerras tribalistas da África. Figura tanto no “paizão” que educa seus filhos pregando a importância da pena de morte, como naquele que espanca a esposa ou penaliza os filhos com agressões. Está nos estádios de futebol (nos campos e arquibancadas) e nos rodeios, nas brincadeiras infantis e nas conversas dos adultos, nas escolas e na bolsa de valores, na literatura de ficção e não-ficção, nos classificados de jornais e nas filas de desempregados, nos anúncios publicitários e na falta de decoro, no despreparo da polícia e na organização do crime, nos latifúndios e nas milícias, nas depreciações e nas submoradias, na neurose e nos efeitos químicos.

Hoje, qualquer jovem, de qualquer sexo, vê beleza em adotar um estilo agressivo perante a vida. O violento capitalismo selvagem, onde o mais forte engole o mais fraco, transformou o mundo em uma selva globalizada em que o “perdão viril” de Gandhi e a doçura romântica de Vinícius de Moraes são vistos como sinais de fraqueza e a violência covarde é o troco à altura ao também covarde sistema de exclusão (que exclui não pela capacidade, mas por contatos e relações) ao mesmo tempo em que alimenta sua engrenagem.

Alimenta-se e repugna-se a violência simultaneamente. Qualquer atrocidade é rapidamente capturada e exibida pela internet ou pelas emissoras de TV saciando assim a sede de violência dos inúmeros consumidores do gênero que, como a “mãe coragem” de Brecht, consomem e são consumidos por ela. A violência vende: diante desse fator não interessa ao mercado elimina-la e sim, propaga-la cada vez mais. Enquanto cultuarmos a violência (mercadológica, física ou moral) ela não desaparecerá. Como no conto de Julio Cortázar, um dia a barbárie com um som impreciso e surdo tomará nossa fortaleza e nos arrastará com ela.

“Alguma coisa está fora da ordem!”, a frase de Caetano Veloso, ao constatar uma população formada por possíveis grupos de linchadores ao mesmo tempo em que via harmonias possíveis num juízo final, é o slogan dos espetáculos de massacres e balas perdidas de um tempo em que crianças cantam músicas que falam sobre armas e tiroteios, obras de arte são depreciadas com pichações e nações são submetidas à violência daquelas que dizem liberta-las. Cada vez mais distantes as mudanças clamadas por 2Pac, cada vez mais latente a desumanidade caótica (“As queer as a clockwork orange”/ “estranho como uma laranja mecânica”) do mundo imaginado por Burgess e retrato por Kubrick. A humanidade caminha para o auto-linchamento com a mesma avidez que consome todo tipo de lixo; enquanto a “Mãe Terra” cansada ser violentada prepara sua reação...

Será a violência o derradeiro sinal de vida do “homem cordial”, de Ribeiro Couto e Sergio Buarque, antes de transforma-se em uma máquina completa? Será a nossa era uma curva descendente na História, jamais imaginada por Charles Darwin? O início de um retrocesso, na contramão evolucionista, no qual Cristo ensinará o revide, Moisés escravizará o povo hebreu, Sidarta lutará pela opulência e Adão será o último macaco a queimar, seis dias antes de o Planeta Água voltar a ser uma bola de fogo?

* Publicado também nos jornais Página Dois ( http://www.paginadois.com/conteudo.php?c=3585 ) e Direto da Redação ( http://www.diretodaredacao.com/ ).

2 comentários:

Anônimo disse...

Amei demais seu texto novo, até porque, me encaixo como vítima do "covarde sistema de exclusão" aff, até me doeu quando li..
quanto a "violência pop" vc citou Tarantino e me senti um pouco culpada..até que gosto de consumir aquilo..mas o que importa destacar é que somos realmente educados para a violência e talvez, com um pouco de sabedoria, possamos renegar esse "inútil aprendizado" e nos mantermos ignorantes quanto a isso.Primatas emocionais. Doces bárbaros.

Obs. Seu último parágrafo é extraordinário. Quase humilhante.

Celso Lungaretti disse...

Leandro, é importante lembrarmos Freud: o ser humano teria, segundo ele, um componente agressivo inato, mas que é sublimado na existência civilizada.

Esse componente agressivo, p. ex., pode se tornar impulso criativo, gerando as grandes obras artísticas e descobertas científicas.

No entanto, o capitalismo potencializa a agressividade, estimulando os indivíduos a voltarem-na contra os outros. É a aclamada competição, que nos equipara aos primatas.

A harmonização dos instintos humanos só se dará numa outra organização social, portanto.