quarta-feira, 5 de setembro de 2007

VIDA

- “ Viver é sofrer.” Sabe rapaz, quando Schopenhauer me disse isto, eu era garoto, muito garoto. Uma criança. Aliás, ele não me disse diretamente, disse indiretamente para um tio meu, que achou genial e decidiu repetir em todas as conversas. Foi em uma das conversas dele com meus pais que eu ouvi. E fiquei impressionado. Não porque fosse alguma novidade, até porque não era. O padre toda semana falava pra gente que o mundo é um vale de lágrimas e que Paraíso só depois da morte e olhe lá. Mas, dito desta forma enfática impressionou muito a criança que eu era. Viver é sofrer. Sabe garoto, até hoje, depois de tantas coisas, depois de perceber que não é bem assim, essa frase parece que ainda ecoa na minha cabeça...

- Quantos anos o senhor tem?

- Hahaha...Eu sei lá... Quantos anos você tem?

- Eu tenho vinte e dois. Na verdade vinte e um, completarei vinte e dois no mês que vem.

- Isso é o que você acredita. Por isso faz sentido pra você. Pra mim não quer dizer nada. Se ainda nos guiássemos pelo calendário romano você já estaria com vinte e cinco, e sabe que diferença faria? Nenhuma. Portanto, se você dissesse vinte, quarenta, dez ou sessenta seria a mesma coisa para mim...

- Mas, quanto mais os anos passam mais sabedoria adquirimos...

- Por quê? Já sei, porque alguém te disse isso e você acreditou. Agora eu te pergunto: Você acha que a vida, por si só, ensina alguma coisa a alguém?

- A vida por si só, não. Mas, a vivência...

- Vivência. Ótimo termo. Sabe garoto, quando eu era jovem eu ouvia tanta besteira vinda de pessoas que teoricamente tinham mais vivência que eu que se tivesse acreditado neles talvez estivesse choramingando para você as merdas que me aconteceram. Mas, eu era diferente de você. Eu questionava. E questionando percebi que eles não tinham resposta para perguntas que fugissem do roteiro. Daquilo que fosse além do que eles aprenderam a pensar. E sabe por quê? Porque a cabeça deles não raciocinava. O cérebro servia apenas de depósito para raciocínios pré-concebidos. Idéias prontas que eles absorviam e arrotavam como se tivesse raciocinado aquilo. É por isso que qualquer jerico quando atinge certa idade passa a bradar suas asneiras como sendo verdades absolutas para outros jericos que sem raciocinar tomam aquilo como parâmetro e por aí vai. E eu te pergunto: Que diabos é a tal vivência, se eles nunca olharam para a vida? É por isso que a idade não me vale de porra nenhuma, entendeu? Porque um dia, dois, uma semana, um ano ou coisa que o valha não acrescenta nada a ninguém. Repetir o que já foi dito, sem usar o raciocínio, sem procurar entender o sentido das coisas, é rodar em círculo e isso pra mim não é viver, portanto, não traz nenhuma vivência.

- Mas, e aquilo que lemos?

- Ah, meu caro. Ler não significa aceitar, sem questionamento, as verdades do autor. Eu já li tanta baboseira com o rótulo de clássico que se tivesse aceitado tudo aquilo eles teriam inutilizado o meu cérebro. Alguns autores mudaram minha vida, minha forma de ver o mundo. Mas, eles só conseguiram isso porque eu os questionei antes de concordar com eles. Caso contrário continuaria o mesmo, com a única diferença que as palavras deles ficariam se misturando com minhas velhas idéias como se fosse um polimento, cuja única função seria dar ao velho a impressão de novo. Mas, preste bem atenção: eu questionei todos eles. Ninguém me doutrinou. Quando eu era uma criança me ensinaram que a vida é um vale de lágrimas, depois meu tio aceitou a filosofia de que viver é sofrer e tentou me fazer acreditar nisso, eu não acreditei. E sabe o que aconteceu? Eu sou um homem feliz. Apaixonei-me, fui feliz; casamos, fomos felizes; meus filhos nasceram e fomos ainda mais felizes; enviuvei e sou feliz.

- Não sofreu com a morte da sua esposa?

- Por que deveria? Como escreveu o meu querido poeta: A dor é inevitável, o sofrimento é opcional. Ela foi a mulher da minha vida, nosso amor está perpetuado em nossos filhos, netos, bisnetos e o que mais vier pela frente. Vivemos uma estória maravilhosa e ela terminou a vida de maneira esplendorosa. Qual é o motivo de sofrimento?

- É... O senhor deu sorte.

- Sorte. É uma boa palavra. Eu também a usaria se meu cérebro fosse mais preguiçoso. Mas, se eu te contar a minha vida talvez você perceba alguma coisa além de sorte.

- E a sua vida profissional? Como foi?

- Vida profissional? Eu não conheço. Minha vida é só esta, se tem outra eu não conheço.

- Você falou da sua vida sentimental e eu me interessei em saber também sobre a profissional. Qual foi a sua profissão?

- Ah entendi. Desculpe, é que pra mim a vida é uma só. Mas, minha vida inteira foi maravilhosa. Eu trabalhei como projetista de cinema, foi sensacional. Assisti fitas inesquecíveis e mais de uma vez. Lembro-me até hoje de uma cena de “Um bonde chamado desejo” que a personagem de Vivian Leigh diz que a morte é o oposto do desejo. Essa frase talvez explique porque a personagem dela sofre tanto. Para ela viver era sofrer.

- Não entendi. Eu concordo com a frase dela. Pra mim viver é isso, é sonhar e correr atrás dos sonhos. Não vejo conexão nenhuma com sofrimento.

- Eu vejo. “Definitivo, como tudo o que é simples. Nossa dor não advém das coisas vividas, mas das coisas que foram sonhadas e não se cumpriram.” Talvez o Drummond concordasse comigo... Mas, de qualquer forma, boa sorte. Espero que você realize seus sonhos...

- No que depender da minha determinação, eles serão todos realizados. Formo-me ano que vem e já consegui um estágio em uma empresa de grande porte. Aquele carro estacionado lá fora é meu, comprei com o meu dinheiro. Muita gente pensa que foi presente de minha mãe, mas não. Comprei com o meu dinheiro. O senhor nunca tentou a carreira de cineasta ou de ator?

- Não.

- Por quê? O senhor, pelo visto, adora cinema...

- Porque não sou artista. Muita gente pensa que gostar de arte é ser artista. E o que acontece? A falta de talento deles achincalha a arte que tanto admiram. Isso quando não confundem entretenimento com arte. Arte é arte. Emprego é emprego. Eu poderia trabalhar numa locadora de filmes, com certeza seria mais útil que esses corpos jovens que confundem cinema com vídeo game. Para você admirar a arte é preciso refinar sua sensibilidade. A apreciação artística é feita muito mais pelo coração que pelo cérebro. Mas, o pouco que sabem, eu diria quase nada, para eles é mais do que suficiente. E eu...sou um velho.Deixa pra lá.

- Juliano, não presta muita atenção no que o meu pai fala porque ele só gosta de provocar.

- Fica tranqüila, Dona Clara. Estamos nos divertindo muito.

- Sabe garoto, no princípio me trataram como rebelde, depois me tomaram por sonhador e agora por débil mental. Veja você, eu que nunca alimentei sonhos, nunca “corri atrás” era o sonhador, agora sou o esclerosado. E a tal vivência? Ela só vale quando vai de encontro ao pré-definido. A vivência é louvável quando um senhor prega como lição de vida tudo que desde criança já tinha como verdade. A vivência só vale para quem reforça o senso comum, qualquer coisa fora disso é esclerose. Não é engraçado?
Diziam que a felicidade acabava junto com a infância; depois que o sofrimento vinha com a paixão; mais tarde que o casamento matava a felicidade do amor; depois que os filhos me fariam pagar pelos meus pecados (os pecados a que se referiam era a minha felicidade); depois que a minha velhice seria infeliz e agora me dizem que terei uma morte terrível. Alguns apostam que irei para o inferno. Sofrimento eterno. O preço que pagarei por não acreditar no vale de lágrimas do padre. Mas, pergunte pra minha filha o legado que nós a deixaremos. Se conhecer meu filho Nelson ou o Glauber pergunte a eles também, ou à minha neta. E sabe o que eles responderão? Que ninguém comprou ninguém, nem ninguém se interessou em aprender como se vender, que existe uma coisa nesta família muito mais concreta que os seus planos para o futuro. Sabe o que é isso? Talvez não saiba. Chama-se amor. E amor não vem dos sonhos. Você não corre atrás. Ele é um sentimento. Muito mais forte que a vida, que todas essas baboseiras que você acredita que farão da sua vida algo que preste. É o que me faz ter certeza de que não sou um viúvo e sim um homem que ama e é e sempre será amado.

- O senhor acredita em vida após a morte?

- Acredito na vida. Quando eu trabalhava como bibliotecário, li um livro de Herman Hesse chamado “Sidarta” que diz que a vida é como um rio, que está sempre em movimento, na nascente e na foz ao mesmo tempo. E a foz, rapaz, pode ser um outro rio, um mar, mas nunca o fim do fluxo, do movimento. Gostei da definição. Aliás, foi nesse emprego que percebi que o meu tio estava equivocado, mas o Schopenhauer talvez estivesse certo.
Agora vou embora, já está me dando sono. Luísa já deve estar terminando de se vestir. Ouça o que ela tem a dizer, é uma garota com muita sabedoria. Aprendo muito com ela. E lembre-se: quando Giordano Bruno afirmou que o Universo era infinito e a Terra não era o seu centro queimaram-no vivo. Qualquer coisa fora do senso comum é vista como loucura, mas nem sempre é assim. Boa noite, meu querido. “Amar é sofrer, eu vou te dizer, mas vou duvidar...”.

Artur Filho foi pra casa, fumou um cigarro e dormiu. Não acordou mais.
Não foram encontrados sinais de sofrimento em seu corpo.

5 comentários:

Zilmara Dahn disse...

Tinha tanto pra dizer que acabei ficando muda por alguns minutos.
O texto abriu minha velha ferida de não ter um velhinho desse pra me alforriar os pensamentos.Concordo que questionar é essencial e nos liberta mas, às vezes, olhando ao redor, num surto de inadequação, penso:" Eu seria tão mais feliz se fosse burra!"

Seu personagem foi constante. Ainda não cheguei lá. Faço um esforço danado pra ser feliz neste mundinho de expiação...mas como seu texto diz,construir um clã autêntico é o caminho.E a esperança de passar meu melhor para minha "foz"
é o que me mantém, pois ela é a continuação de minhas correntezas.

E que eu possa partir sem sinais de sofrimento. E que enterrem meu coração, na curva de um rio...

Walmir disse...

esse modo socrático, dialogal, de escrever, questionar tem espertezas mesmo de mestre que escolhe seu discípulo.
páz e bem
walmir
http://walmir.carvalho.zip.net

Walmir disse...

Pois tenho vindo cá à porocura de novos posts e nada?
Que anda rascunhando nessas preguiças?
Estou cobrando.
Paz e bem

Unknown disse...

Confesso que não li a provável pérola acima, mas, por falta de encontrar no blog o "Tesouros da Juventude", do mesmo autor, resolvi publicar minha crítica neste primeiro espaço.

A evolução como escritor do nosso outrora Brizola (quem não foi pra escola com ele que me desculpe) é galopante. Fenômeno muito grato para as mentes dos que podem ter acesso permanente à produção desse jovem talento (que tem um espírito milenar, entretanto). Leandro está cada vez mais deitando e rolando nas palavras, com um cinismo bem-intencionado que nos coloca no olho desse furacão de lama que uns e outros chamam de sociedade. Como leitor de capacidade mental mediana, digo que o texto aparentemente é visto, mastigado e deglutido quase que ao mesmo tempo, mas quando chega o ponto final é que o espírito percebe estar diante de um material infindável, que vai sendo gravado nos confins do universo para, junto com a obra dos cada vez mais escassos artistas do Bem, explodir de maneira avassaladora na "cara dos caretas" e impor uma sociedade mais decente.

Salve, irmão. O "TdJ" arrepiou. O B&B, o futuro e o herdeiro agradecem!

FL

Walmir disse...

Estive aqui lendo seus comentários sobre comentários.
Sabe que é coisa interessante, rapaz?
Me deu umas idéias.
Paz e bem